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Mãos à obra

Lula enfrenta desafios em um mundo em convulsão

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Autor/Imagem:
Roberto Amaral* - Foto de Arquivo/Ricardo Stuckert - ABr

A crise política – anunciante do que virá – exige da esquerda brasileira o engenho e a arte que lhe têm faltado: compreender as circunstâncias e o caráter do governo Lula e, nele e em face dele, identificar seu papel e arrecadar os elementos de que carece para agir. Procuramos compreender a realidade para modificá-la, o que exige reflexão, um olhar histórico e um simultâneo comprometimento com o futuro em construção.

Carecemos de uma esquerda preparada para rever objetivos e corrigir paradigmas, despida de partis pris, ousada o suficiente para reavaliar certezas e axiomas, sempre em benefício do processo revolucionário real. Processo que, exatamente por não abdicar das utopias fundadoras, mantém-se atento ao mundo objetivo e suas circunstâncias – não como ditadura da história, mas como fenômeno; não como esfinge, mas como solução.

Só assim a esquerda poderá superar o torpor e a estéril expectativa histórica (lamentável quadro atual), e partir para a ação; águas paradas não movem moinho. A ordem, com sus margens plácidas, é o refúgio do atraso, o velho que se disfarça no aparentemente novo e vivo, o velho fascismo que ressurge abraçado às fantasias do neoliberalismo e do individualismo – base da democracia autocrática, oximoro léxico e político, modelo da ordem trumpista recém-instalada, prenúncio de uma nova fase do imperialismo em busca do controle planetário.

O realismo político, a leitura do real, não implica conversão ao “império das circunstâncias”, mas, por reconhecê-lo, compromete-se a conhecer e construir as condições objetivas para sua superação. Assim, ao sustentar o governo cuja eleição ajudou a viabilizar, a esquerda torna-se agente do processo social. E a esquerda é movimento.

A esquerda e o governo (que não são sinônimos, mas estão profundamente ligados, gostemos ou não) caminham, às vezes, dois passos atrás e um à frente – claudicantes, mas de mãos dadas, pois seus destinos estão entrelaçados. Não se trata apenas de escolha, mas de um imperativo do processo social. A esquerda, liderando as forças democráticas e progressistas consequentes, tornou-se o principal anteparo ao avanço do neofascismo. A eleição de Lula, fruto desse processo, foi um dique democrático, e sua consolidação é necessidade histórica. Fomos atores desse momento e nosso papel não se esgotou com a conquista do governo, conquista árdua, dependente de uma aliança heterodoxa, difícil de administrar, mas indispensável nas circunstâncias, como os fatos certificam.

Nada, porém, justifica um recuo fático e político quando a realidade cobra avanço. A renúncia à batalha ideológica é inaceitável, especialmente diante da crescente articulação da extrema-direita, que resgata, como nas primeiras décadas do século passado, um modelo de “internacional” fascista –sustentado pelo grande capital e governos poderosos, como agora o dos EUA, no início de sua mais feroz fase imperialista.

A crise de acumulação do capitalismo, fermento da crise globalizada de que apenas vislumbramos os primeiros sinais, condiciona fortemente o impasse brasileiro. Nossas responsabilidades crescem diante do governo eleito em 2022. Se não é um governo de esquerda (nem mesmo o dos sonhos perdidos de 1989 o seria), é um governo pelo qual somos responsáveis perante a História. Essa responsabilidade é tanto maior quanto mais evidentes se tornam o caráter da crise econômica, social e política e a natureza de frente ampla do governo, que, ainda quando eleitoralmente necessária, demanda atuação crítica e estratégica da esquerda.

A esta cabe avançar, para poder resistir.

Nosso papel, repito, não é de apoiadores cegos do governo de coalizão (como uma torcida organizada), nem o de críticos contemplativos, mas de sujeito no processo – o que implica corresponsabilidade fática e histórica. Essa circunstância exige tanto a defesa do governo quanto a análise crítica, apontando tropeços e sugerindo caminhos. A esquerda deve disputar a liderança ideológica e programática da frente e do governo, atuando na política institucional, mas sobretudo na organização popular, seu campo preferencial de combate.

O distanciamento das massas, evidenciado pelos números de 2024, demanda a reconstrução dos movimentos sociais e a retomada do proselitismo posto ao relento. É preciso atuar para além das negociações de cúpula e de gabinete (tão ao agrado do terceiro andar do Palácio do Planalto), terreno da direita, onde ela dita as regras do jogo de que é sempre vencedora.

Governo e esquerda, Estado e partidos cumprem papéis distintos, ainda que possam ser afluentes de um mesmo projeto. A esquerda não pode aparentar surpresa diante da crise governamental, tampouco considerar-se alheia à sua origem ou imune às suas consequências. Mais uma vez, caminhamos juntos: se o governo carece de um projeto de país (está a devê-lo desde a), a esquerda brasileira tampouco tem clareza sobre o que fazer ou o que pretende politicamente, confunde-se numa sequência de táticas e não se encontra com um rumo estratégico. Até agora, não apresentou nem defendeu um programa de mudança e construção do novo, e sequer dispõe de um programa coerente pelo qual possa ser identificada pela sociedade.

Mas parte dela se percebe moralmente superior ao que identifica como “pobre de direita”…

Até aqui, capinando nessa carestia político-ideológica, a esquerda brasileira, talvez como reflexo da conjuntura mundial, marcada pelo avanço da extrema-direita na Europa, nos EUA e na América Latina (hosanas à exceção mexicana!), tem assumido o papel de defensora da ordem, da institucionalidade, do estabelecido, permitindo que o fascismo ocupe no imaginário popular o espaço da contestação ao establishment. No governo, adotamos o modelo econômico de exclusão lucrativa, e assim aderimos ao projeto de tornar o capitalismo suportável – papel que antes coubera à socialdemocracia.

Assim, renunciamos até mesmo às veleidades revolucionárias de cunho retórico. Ao ignorar a luta de classes e abandonar o proselitismo socialista, naturalizamos a desigualdade social obscena, e, ao nos ausentarmos do enfrentamento, passamos a ser vistos como parte do sistema neoliberal, tornando-nos mantenedores da ordem na qual nossos governos e nossos agentes são eleitos para governar em minoria. Com isso, cedemos espaço para o discurso da direita contra um sistema que ela própria criou. As consequências, como bem lembrava o Conselheiro Acácio, sempre vêm depois – e cobram um preço altíssimo na política real.

Estranha, portanto, é nossa surpresa quando os explorados se revelam confusos na identificação de aliados e algozes.

O que não se pode cobrar de um governo como o nosso, jungido às suas circunstâncias, deve ser exigido das forças de esquerda. Ao renunciar ao seu papel histórico, a esquerda se fragiliza política e organicamente, o que, por sua vez, enfraquece o governo que deveria sustentar e, em última instância, compromete o projeto democrático em que apostamos para confrontar a escalada reacionária mundial.

Nada obstante o “ano eleitoral”, devemos cobrar do governo, isto sim, um programa estratégico para o Brasil – algo que, renovando a esperança, vá além da cervejinha e da picanha do fim de semana, ensejando que ele, governo, dialogue diretamente com a sociedade sobre o que fará ou precisará fazer para garantir o desenvolvimento sustentável, a criação de riqueza e a redistribuição de renda. O passo, pequeno passo que podemos dar, no presente, olhando para uma nova sociedade.

As esquerdas haverão de lutar, já agora, por uma nova maioria política capaz de deter a regressão reacionária e abrir caminho para uma retomada das reformas sociais interrompidas pelo golpe de 2016 e pela ascensão do bolsonarismo, para a qual o impeachment de Dilma Rousseff assoalhou a estrada.

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Roberto Amaral foi ministro da Ciência e Tecnologia com Lula 1

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