Ao fundo, na foto, a Praia do Gunga. Para alguns ‘bairristas’ de Barra de São Miguel, vem a ser uma extensão da paradisíaca Praia das Conchas. Que seja. Quem sou eu, recém chegado à cidade, para contrariar os nativos. Em primeiro plano, na mesa do Barra Beach, Tio Zeca, um velho pescador que conheci no domingo, 7. A principal característica dele é a humildade. Passou caminhando com a água pelas canelas enquanto a maré já quase invadia a praia.
Convidei-o para subir. A ideia era conversar e compartilhar com ele um caldo de camarão, uma cerveja e uma dose de uma salinas. Tio Zeca, tímido, fez um movimento com a cabeça, como quem diz não dá, isso não é lugar para gente como ele. Insisti. Ele olhou ao redor, e Jeferson, o garçom que me atendia, não deixou por menos: “Suba, homi. O doutor chamou, ele manda. Cliente bom é assim. A companhia ele escolhe”.
Tio Zeca pediu três minutos. Antes jogaria a tarrafa para ver se já havia algum cardume por perto. Uma lançada só e ele se aproxima com algumas suculentas tainhas tentando escapar do emaranhado de linhas do equipamento do velho pescador.
Seu primeiro gesto, já próximo à mesa, foi passar as mãos na desgastada calça descolorida. Já sem areia na roupa, pediu licença e sentou-se em uma cadeira ao meu lado. Apresentou-se. Simplesmente Tio Zeca, sem sobrenome. Poderia ser Santos, Silva, Souza. Com certeza, imaginei, jamais um Calheiros ou Lyra, muito menos um Lira com i.
Chamado por mim, a pedido do meu convidado, Jeferson trouxe-nos uma sacola de plástico, onde Tio Zeca depositou uma porção de 15 tainhas. Outras três, ainda filhotes, ele devolveu ao mar. Depois, já com a tarrafa sobre o ombro esquerdo, recusou a dose de cachaça e um copo de Original (embora vestida com a roupa da Brahma). “Sou crente, doutor! Não bebo”. Mas aceitou uma Coca-cola.
Pai de três herdeiros de nada, salvo o caráter que se lhe estampa na face, Tio Zeca, avô de um menino presenteado pela filha, vive na praia e dela sobrevive. Usa sua tarrafa para garantir o almoço, o jantar e o café da manhã, à base de cuscuz ou macaxeira. Com tainhas, claro.
Nesse pedacinho de paraíso incrustado na praia esquecida pelo tempo, onde o Sol nasce como um suspiro dourado sobre as águas transparentes, ergue-se a figura enrugada de Tio Zeca. Seu nome, sussurrado pelo vento, é quase ignorado, mas sua presença é tão marcante quanto as ondas que dançam ao seu redor.
É na maré alta que ele se faz presente, carregando a tarrafa com costuras pontuais, necessárias pelo longo uso e pelas histórias do mar. Seus passos são lentos, mas determinados, como se a própria essência da pesca estivesse enraizada em sua alma. Tio Zeca é conhecido como o guardião das tainhas e outros pequenos peixes, embora se veja, até para evitar morrer de inanição, na condição do lobo que guarda o galinheiro. No espírito, porém, é um mestre na arte de pescar com sabedoria e paciência.
Ao lançar sua tarrafa no turbilhão das águas, o velho parece fundir-se com o oceano, tornando-se um apêndice da própria natureza. Seus olhos, profundos como abismos marinhos, acompanham o balé das marés, buscando os sinais sutis que revelam a presença das próximas refeições.
Enquanto espero, noto, a curta distância, que sua mente vagueia por lembranças antigas, navegando por mares de memórias há muito tempo adormecidas. Sentado ao meu lado, meu novo conhecido recorda os dias de glória, quando as águas transbordavam de peixes e o Sol parecia sorrir para ele em cada amanhecer.
Agora, em meio à solidão das ondas que carregam o peso da poluição, ele encontra conforto na simplicidade da vida. Cada peixe capturado é uma vitória, uma pequena conquista que celebra sua conexão eterna com o mar.
É assim, revela-me, levando a latinha de refrigerante à boca, que dia após dia, ele retorna à praia, com sua tarrafa e sua sabedoria ancestral. Tio Zeca parece ser uma figura única, capaz de ouvir o silencioso segredo do oceano, um eco distante de tempos passados que se recusam a desaparecer completamente.
Com a latinha de Coca-cola vazia, enquanto o Sol indica que vai se esconder no horizonte distante, ele ajeita a tarrafa. Dá sinais de que está se despedindo. “A sacola (com as tainhas) é para o senhor, doutor. Agora preciso encher a tarrafa e recolher-me para casa, pois logo é hora da janta”. Trocamos presentes. Ele deixou-me os pequenos peixes, então já quase inertes, e depositei no bolso da camisa dele um mico-leão dourado.
Logo depois, quando Jeferson já me apresentava a conta do que consumimos, Tio Zeca passou ao largo, a tarrafa nas costas, a água pela cintura. Pareceu-me que ele carregava não apenas peixes, mas também as histórias de uma vida vivida em harmonia com as marés. O velho pescador pode ser esquecido pelo tempo, mas sua essência perdura, imortalizada nas águas que ele demonstra tanto amar.
Particularmente, eu gostaria que essa crônica chegasse ao conhecimento do Wellington Dias. É que Tio Zeca, sabe-se lá por que motivos, perdeu, nos últimos ajustes determinados por Lula, seu benefício do Bolsa Família. Era o dinheiro que ele usava para comprar pão, farinha, feijão e ovo. Até que essa injustiça seja corrida pelo presidente, o velho pescador vai vivendo do que retira do mar.