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Lula precisa limpar a caserna para não escorregar na sujeira

Foto/AFP - EstadãoConteúdo

A história de nosso país, na qual o povo não tem o registro de agente, é a história da casa-grande e de seus herdeiros – os filhos da lavoura do açúcar e do café e do escravismo que hoje habitam a Faria Lima como sócios menores do grande capital –, atravessada pela erva daninha da conciliação, que é sempre a concertação dos interesses da classe dominante: deixar tudo como está para ver como fica.

Quando o desenvolvimento das forças sociais reclama a ruptura, as conveniências de classe impõem a negociação rasteira (ou o recuo histórico), o diktak que vem de cima, como foi construído o país. Sai de cena o estadista e as luzes iluminam os procuradores do statu quo. Vence a “pequena política”, anatematizada por Gramsci. Assim o poder evita as mudanças, sejam econômicas ou políticas, e se assegura de que a natureza do mando continuará incólume.

A política de permanente conciliação é a avenida por onde trafega a impunidade que na vida militar construiu a indisciplina e as insurgências que destroem a ordem constitucional e a democracia. A intentona de 8 de janeiro, seus antecedentes e suas principais consequências (muitas ainda distantes de superação) não devem ser vistos nem como fatos isolados, nem como pontos fora da curva. São o resultado do processo histórico que trouxe a república até aqui. Mudar esse curso é um imperativo de salvação nacional.

As investigações levadas a cabo pelo STF e pela Polícia Federal, nada obstante sua extraordinária importância, revelam, para a história, o consabido: a maquinação golpista das forças armadas: delas, coletivo, corporação, instituição republicana; delas como um só sujeito. Registrem-se, porém, dois fatos novos, alvissareiros na crônica de nossa república permanentemente infante: 1) a decisão de investigar os crimes políticos perpetrados contra a democracia, e 2) como desdobramento, a comprovação fática e documental dos delitos, confirmando a autoria coletiva. O que o já apurado e conhecido põe a nu não são crimes de “comandantes desgarrados”, expelidos pelo corpo degenerado como mecanismo de autodefesa, como era a encomenda do sistema, regra aplicada para os insurretos militares de todas as intentonas, levantes e golpes militares que pontilham a república, desde os golpes de Deodoro e Floriano.

É de supor, se os fatos não nos estiverem iludindo, que desta feita a conciliação não escreverá o enredo e que a vitória não será da impunidade, a erva daninha que transformou as forças armadas do Estado brasileiro em uma confraria de indisciplinados, sempre pronta para rasgar a Constituição e pondo por terra a legalidade democrática. Comunidade que se organiza à parte tanto da sociedade quanto da república, construindo um mundo isolado em si mesmo, com regras próprias, valores próprios e objetivos próprios, desapartados do sentimento nacional.
Não há, aqui, espaço suficiente para o registro dos delitos da caserna e dos nomes dos militares que, nada obstante o crime de lesa-pátria, permaneceram em suas fileiras, fazendo longa carreira, muitos coroados como heróis e líderes.

Talvez uns poucos exemplos possam ser esclarecedores. Arrolo um só. Em 1937, muito antes de ser cunhada a expressão fake news, um falso plano comunista de tomada do poder (divulgado como Plano Cohen), foi o pretexto de que se utilizaram Getúlio Vargas e os generais Góes Monteiro e Eurico Dutra para darem o golpe de Estado que instaurou a ditadura do Estado Novo (1937-1945). Sua redação foi obra da invencionice criminosa do então capitão, integralista e antissemita, Olímpio Mourão Filho, que em abril de 1964, agora general e comandante de tropa em Juiz de Fora, marcharia contra a Guanabara no exercício militar concertado pelos estados maiores das três forças para depor o presidente da República e instaurar, como se sabe, a ditadura de 1º de abril (instaurada no Dia da Mentira para “restaurar a democracia”), cujo prontuário de 21 anos de crimes e exorbitâncias compreende cassações de mandatos, prisões, aposentadorias, exílios, tortura e assassinatos sem conta que o país, até hoje, não pôde apurar.

A intentona de 8 de janeiro, o clímax (mas não necessariamente o desfecho) de mais de quatro anos de conspirações e atentados à Constituição, presidida pelo capitão proscrito e levada a cabo com generais asseclas (como os deploráveis Augusto Heleno e Braga Neto). Ela é simplesmente o coroamento da aventura militar que levou ao poder a direita protofascista. A operação de estado-maior foi detonada em 2 de abril de 2018 com a intervenção do então comandante do exército, o indisciplinado general Eduardo Villas Bôas, intimidando por meio de um tweet um STF sem músculos, naquele então dominado pelo medo (em depoimento ao CPDOC da FGV, o ex-comandante do exército diz haver discutido o teor do tweet com seus auxiliares imediatos e com três ministros do governo Temer).

Ao assegurar-se da inelegibilidade de Lula, o velho e enfermo general despedia-se da vida pública atapetando a aventura de seu pupilo, já então abraçado pelo que há de mais atrasado na classe dominante brasileira, os especuladores de todas as bolsas e o agronegócio troglodita – em suma, os adversários de quaisquer avanços sociais, econômicos e políticos que de alguma forma, a mais tímida que seja, acenem em favor da classe trabalhadora e dos pobres em geral.

O governo, uma enciclopédia de desmandos, constituir-se-ia como um valhacouto de irresponsáveis, conspiradores e depravados, como ficou documentado pelo registro da reunião ministerial de 22 de abril de 2020. Fosse naquele então o Brasil um país organizado por instituições maduras amparadas na opção democrática de sua gente (coisa que, infelizmente, ainda não é), e aquela súcia teria saído do Palácio do Planalto para o xadrez. Foi a primeira oportunidade perdida pela República para se salvar.

Perdeu uma segunda, quando o Presidente Lula, nos tempos imediatos à posse, decidiu não enfrentar a questão militar, e seu ministro da defesa – bem escolhido para esse fim – decidiu negociar e compor com os conspiradores, de que resultou a permanência de oficiais golpistas em posições estratégicas para a segurança da república e do governo. Deu no que deu. Salvaram a ordem democrática a incompetência dos meliantes e a recomendação da Casa Branca (revela o noticiário internacional), desaconselhando seus pupilos a tomarem assento na aventura. Um dos que teriam bem compreendido os sinais de Tio Sam seria o comandante do exército, que o inqualificável Braga Neto chamaria de “cagão”.

Um país sério, ou que pretenda o autorrespeito e o respeito da comunidade internacional (no momento em que escrevo o presidente Lula está no Egito, para participar de reunião da Liga Árabe), não pode deixar suas instituições e seu povo à mercê dos generais ou coronéis ou capitães mal formados, mal preparados e mal treinados, medularmente autoritários, descomprometidos com a Constituição e a democracia e ao mesmo tempo, contrariando o passado das corporações, benevolentes com os interesses estrangeiros que cortam a economia nacional e aprofundam a desigualdade social.

Ao tempo em que nos põe de joelhos na soleira do mundo civilizado, a corporação militar foge de sua única missão (e justificativa para existência dispendiosa em país que ainda combate a fome) que é a de nos defender contra possível inimigo externo. Opta pela guerra interna (para tanto foi criada a Escola Superior de Guerra, cópia subdesenvolvida da War College e inventada a doutrina da segurança nacional), e assim elege seu povo como inimigo natural. Instrumento da guerra ideológica ditada por um EUA sempre beligerante, adota como princípio os ditames da finada Guerra Fria e a divisão do mundo em blocos incontornáveis. Sem nos ouvir, nos dita a opção nacional nesse divórcio, e para fazê-la valer é capaz de rasgar a Constituição, depor presidentes e impor ditaduras.

A abolição em 1888 nos livrou dos capitães-do-mato; o parco desenvolvimento capitalista colocou em cena, dominando o palco, os guardiães do conservadorismo. Assim, nosso futuro continua sendo o passado, como, sem fazer piada, nos lembrou, no século passado, o filósofo carioca Millôr Fernandes.

O insondável processo histórico nos oferta mais uma vez (e a prudência aconselha não abusar dos bons fados) a oportunidade de a república – quando completa 135 anos de instituição, e a poucos dias de lembrar, para condenar, os 60 anos do golpe de 1º de abril de 1964 – rever o papel que as forças armadas do Estado brasileiro têm desempenhado até aqui, e a partir dos interesses de nosso povo decidir que forças armadas precisamos ter para defender nossos interesses, que começam pela salvaguarda da liberdade, da democracia, da igualdade social, do desenvolvimento e do progresso, bem como a busca da paz interna, e da paz como guia de seu papel no concerto das nações

Até aqui, porque o país não diz de que forças armadas precisa, as corporações ditam que Brasil devemos ter. À imagem e semelhança de suas deformações ideológicas.

Louvem-se a ação e a coragem do STF de hoje, e a ação até aqui profissional da PF, ambas instituições que sempre estiveram a serviço do conservadorismo. Se os fatos caminharem segundo a trilha que se vê traçada, os muitos delitos serão apurados e seus responsáveis – puros meliantes, financiadores de baixo e alto coturno, militares de todas as patentes, comandantes e simples serviçais como o Major Cid, ajudante de ordens e valet do capitão expulso das fileiras como mau militar – serão julgados e punidos. Não é pouco, posto que muda o caminhar da história até aqui.

A punibilidade substituindo a impunidade, ademais de dever do Estado de direito, evitará a continuidade da indisciplina militar e da recorrência golpista. É muito, mas ainda não é tudo, pois o fundamental é a república definir que forças armadas deseja. Um olhar para o futuro a partir da revisão histórica.

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