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Lula sinaliza diálogo com militares, mas vai colocá-los no devido lugar

O tenente-brigadeiro do ar Carlos Almeida Baptista Júnior é um exemplo acabado de como a política se tornou uma atividade cotidiana dos militares brasileiros. Atual comandante da Aeronáutica, tida como a mais técnica e disciplinada das Forças Armadas, ele faz questão de se comportar em público como um militante bolsonarista radical.

O episódio mais grave ocorreu em julho de 2021. À época, a CPI da Covid apurava suspeitas de corrupção envolvendo o general da ativa Eduardo Pazuello e o coronel Élcio Franco, então ministro e secretário-executivo da Saúde. Incomodado, ele resolveu intimidar o presidente da comissão, o senador Omar Aziz, do PSD amazonense, em viva voz. “Homem armado não ameaça”, disparou, em entrevista a O Globo.

A entrevista, que num país sério deveria render a imediata demissão do comandante, foi concedida após o Ministério da Defesa – então sob o comando de Walter Braga Netto, general da reserva do Exército que em 2022 seria candidato a vice-presidente de Jair Bolsonaro – soltar uma nota que também buscava intimidar a CPI. Nela, dizia-se o seguinte: “As Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano às instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro”.

Após as eleições de outubro passado, Baptista Júnior passou a curtir postagens em que bolsonaristas pedem que ele participe de um golpe de estado. A última estripulia do brigadeiro foi marcar, para o próximo dia 23, a data de sua saída do comando da Aeronáutica. Imediatamente, os colegas de Exército e Marinha resolveram seguir o exemplo. Com isso, abriram uma crise que o governo Lula terá de contornar sem sequer ter assumido o poder: a nomeação dos novos comandantes terá de ser feita por Bolsonaro, que nesse caso precisaria conversar a respeito com quem irá sucedê-lo. E, claro, o presidente de extrema direita poderá decidir não nomear ninguém, deixando as Forças Armadas sem comando na passagem da faixa presidencial.

É uma situação potencialmente explosiva, inclusive porque a decisão dos comandantes de saírem antes da posse deixa entendido que eles não desejam bater continência a Lula e Geraldo Alckmin, eleitos pelo voto direto de 60.341.333 brasileiros. É um mau exemplo que dificilmente deixará de produzir consequências ruins num ambiente tão profundamente hierarquizado como o militar.

Pois o brigadeiro Baptista Júnior se disse satisfeitíssimo, na quinta-feira, dia 1º, com a muito provável nomeação de José Múcio Monteiro para o comando do Ministério da Defesa no terceiro governo de Lula. “A possível escolha do ministro José Múcio foi muito bem recebida pelos integrantes do Alto Comando da Aeronáutica”, ele disse. “É uma pessoa inteligente e ponderada, com que tivemos ótimas relações em suas funções passadas”.

Em democracias maduras, oficiais militares não opinam sobre a escolha dos políticos civis que irão comandá-los, seja em eleições livres, seja na nomeação de ministros da Defesa. Na frágil e incompleta democracia brasileira, essa regra é quebrada com ajuda da imprensa, que não se constrange em colher os palpites de gente que – justamente por andar armada – não deve opinar sobre assuntos das forças desarmadas, para citar o termo do ministro Edson Fachin.

Como por aqui as regras são outras, sabemos que o alto oficialato das Forças Armadas – em todas, mas principalmente no Exército, majoritariamente bolsonarista – estão radiantes com a indicação de Múcio. Hoje com 74 anos, o pernambucano começou a carreira política na Arena, o partido de situação criado pelos militares para dar ares de democracia à ditadura implantada em 1964. Foi deputado federal por cinco mandatos, sempre por partidos de centro-direita, até ser chamado por Lula para ser ministro-chefe da Secretaria de Relações Institucionais, em 2007. Ficou no governo até 2009, quando o petista o nomeou ministro do Tribunal de Contas da União, o TCU – um cargo vitalício que está entre os mais cobiçados em Brasília.

Foi o perfil conciliador de Múcio o que seduziu Lula em 2007 e, novamente, agora. O ex-ministro do TCU também dialoga bem com oficiais das Forças Armadas, o que certamente é um ativo valioso nesse momento. Também é (a essa altura, provavelmente não mais) benquisto por Jair Bolsonaro, que já se disse “apaixonado” por Múcio e lhe franqueou o cargo que quisesse assumir em seu governo – o que nunca ocorreu.

Tudo parece indicar, portanto, que Múcio é o homem certo no lugar certo. Não é bem assim: na cada vez mais robusta comunidade acadêmica que estuda Forças Armadas e políticas de Defesa em universidades brasileiras, a decisão de enterrar o grupo de trabalho de transição que trataria do assunto caiu muito mal. “É a pior forma de se lidar com um tema que hoje é tão delicado”, me resumiu um desses pesquisadores, Juliano Cortinhas.

É corrente, nos debates dessa comunidade, a necessidade de retirar as Forças Armadas da política de forma definitiva. É algo que, a rigor, a democracia brasileira nunca foi capaz de – ou sequer tentou – fazer. E o resultado disso são justamente os golpes e crises periódicas causadas pelos fardados. A mais recente, que ajudou a gerar a presidência de Jair Bolsonaro, começou com sucessivos atos de indisciplina e insubordinação não punidos, que se acumulam desde os tempos em que Lula ainda era presidente.

Aí é que está o problema: se por um lado o bom trânsito de Múcio com Bolsonaro e os militares pode ajudar a costurar a sucessão nos comandos das Forças, ela também pode fazer com que os fardados – e o novo governo – sintam-se à vontade para varrer a sujeira novamente para debaixo do tapete. E não há como fazer isso: militares da ativa estão participando dos atos que pedem um golpe de estado. Caso, por exemplo, de um capitão que trabalha no gabinete de Bolsonaro.

É imprescindível que eles sejam punidos pelos novos comandantes – militares da ativa são proibidos, por lei, de se manifestar politicamente. Ou se passará, novamente, o exemplo de que a indisciplina compensa – o que já ocorreu no caso de Eduardo Pazuello, absolvido após participar de uma motociata no Rio de Janeiro.

É a falta de punição aos militares brasileiros que torturaram, mataram e ocultaram cadáveres que permite às Forças Armadas seguir chamando o golpe e a ditadura de “revolução”. Da mesma forma, se aceitar que se coloquem panos quentes sobre as graves violações disciplinares cometidas por militares em suas aventuras políticas nos últimos anos, o futuro governo Lula permitirá que a sanha golpista siga viva e forte nos quartéis. Como afirmou o professor Cortinhas, as Forças Armadas precisam voltar a receber ordens dos civis. Ordens que as coloquem em seu papel constitucional. Mesmo que seus oficiais não gostem disso.

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