Foi com severa preocupação que assisti a cerimônia em que o presidente Lula foi premiado, em Nova York, pela Fundação que leva o nome do bilionário Bill Gates, proprietário da Microsoft e uma das maiores fortunas do mundo, entre aqueles que o nosso presidente mencionou, criticamente, como, possivelmente, dotado de mais poder econômico que um Reino Unido ou outros grandes países. O discurso de Lula entristece não por ele declarar preferência pela tese de Henry Ford às teses de Marx. Qualquer observador mais atento, percebe que esta opção foi feita há tempos.
O que entristece é o grave esquecimento , nesta área de computadores, do grande esforço feito pelo Brasil para alcançar, como alcançou , a capacidade de produzir minicomputadores com tecnologia nacional, graças à política estatal de Reserva de Mercado e com a instituição de políticas adequadas, entre elas a criação de uma indústria estatal de computadores, a COBRA, sucesso que, maquiavelicamente, foi transformado em “fracasso”, por uma sofisticada ação imperialista internacional, que não admitia concorrentes com independência tecnológica. Ou, para lembrar uma frase advertência de Henry Kissinger para o Brasil: “os EUA não vão permitir o nascimento de um novo Japão abaixo da linha do Equador”
O esquecimento do software livre.
Em 2003, em seu primeiro ano no primeiro governo, recordo que quando se preparava uma visita do presidente Lula aos EUA, o então Ministro da Educação, Cristovam Buarque, teria buscado promover um encontro do mandatário exatamente com Bill Gates. Porém, naquela época, ainda havia um sopro de esperança – Cartola diria uma esperança vaga – com algumas iniciativas no seio do governo visando a adoção , pelo Estado Brasileiro, do Software Livre, que seria implantado de forma ampla em toda a Administração Pública Federal, como superlativos e inquestionáveis benefícios para o povo brasileiro, sejam econômicos ou aqueles incalculáveis ganhos da independência tecnológica, cujos desdobramentos se configurariam em formidável estímulo para o desenvolvimento de tecnologias próprias neste ramo. Que, ninguém nega, é uma questão de poder.
Lembro que a iniciativa, supostamente do Ministro da Educação não tinha sido avaliada com simpatia pelos segmentos mais à esquerda da sociedade brasileira, especialmente, pelos protagonistas do Movimento do Software Livre. Desconheço como se deram exatamente as pugnas de bastidores, mas, ao final daquele ano ou pouco depois, Cristovam Buarque foi demitido num telefonema presidencial quando se encontrava no exterior.
Mas, com a volta de Lula ao Alvorada, para um terceiro mandato, o que se nota é que a bandeira do Software Livre parece esquecida no Palácio do Planalto, não apenas no Ministério da Educação, onde se registra desconcertante e temerário espaço para políticas elaboradas e aplicadas pela Fundação Leman. No mínimo, a premiação de Lula pelo dono da Microsoft indicaria que não há nada mais remoto e esquecido hoje que a ideia da disseminação dos software não proprietários pelo Brasil. E, também esquecida está, a Política de Reserva de Mercado para Informática, que levou o Brasil a ser um dos poucos a alcançar a produção de minicomputadores com tecnologia totalmente nacional. É curioso este esquecimento por parte do Presidente Lula, já que ele próprio tem recordado e divulgado todas as conquistas do Legado de Vargas, e, em diversas ocasiões, o presidente refere-se ao Governo Geisel como um período em que , em que pese o regime ditatorial, foram adotadas medidas corretas, como a implantação de estatais, o fortalecimento da Petrobrás, a criação da BR Distribuidora, e, também, a política de independência tecnológica na produção de hardware e software, consubstanciada na estatal Cobra, indústria de computadores. Os carentes de manejo sustentável da dialética poderão se confundir que há alguma reivindicação do ex-ministro Cristovam, ou nostalgia pelos tempos autoritários. Nem uma coisa, nem outra, O que há aqui é reivindicação de uma política de estado para setor de informática, o que impediria que Lula caísse na armadilha bilionária do Gates, como queria antes o ex ministro da educação.
Que teria ocorrido para este esquecimento? O Presidente receber um prêmio de um dos maiores bilionários do mundo, e, em especial, um fabricante de computadores e equipamentos, largamente consumidos pelo Estado Brasileiro, pode ser entendido como uma rendição desindustrializante, já que é o próprio mandatário brasileiro que proclama e reivindica a necessidade de uma vigorosa industrialização nacional, com independência tecnológica, como se fez com a Reserva Nacional de Informática? Certamente, não será o Ministro Camilo Santana, da Educação, como também não fora antes o Ministro Cristovam Buarque, o mais animado em promover industrialização independente, que poderia ter luminosos desdobramentos em tecnologias educacionais para um país que ainda nem sequer tem uma meta para erradicar o analfabetismo. Seria de emocionar Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Paulo Freire quanto ao potencial de ferramentas educativas de emancipação!
O mais chocante e lamentável não é ver Lula confessar preferir as teses de Ford às de Marx. O mais chocante é não escutar nenhuma voz alertando que o presidente estava sendo usado pelo grande fabricante de computadores, enquanto somos, como Nação, consumidores de produtos que já tivemos a capacidade de produzir nacionalmente!! Seria a negação da tese da Coação da História, bradada por Vargas, ainda estudante de advocacia: “pobres dos países prisioneiros da coação da história, forçados a comprar a preços artificialmente elevados produtos fabricados com a sua própria exportação!” Uma política que foi destruída por uma conspiração internacional visando destruir independência tecnológica alcançada e que, tivesse continuado, nos colocaria em patamares muito avançados na estratégica indústria informacional mundial. Tal como a Embraer foi um sucesso, uma empresa estatal que comprovou ser apenas um mito privativista a suposta incapacidade do Estado em promover avanços tecnológicos. Aí está a Petrobrás provando o contrário. Talvez o presidente devesse ser alertado que quando montou o Ministério da Aeronáutica e o ITA, Getúlio Vargas pretendia o desenvolvimento tecnológico aeronáutico. Por isso mesmo, talvez seja mais eficaz, para a industrialização nacional, que o presidente Lula usasse as ferramentas estatais que dispõe – ações Golden Share em mãos da Aeronáutica – para recuperar espaços de soberania estatal na Embraer, a exemplo do que tem buscado fazer, parcialmente, na Vale do Rio Doce, criminosamente privatizada pelo Governo FHC, a preços negativos.
Mas, Bill Gates é uma referência negativa que vai bem além do oligopólio exercido sobre computadores e seus derivados. Em 2007, parte considerável da África foi acometida por um surto de febre amarela, colocando em risco a vida de milhões de seres naquele Continente considerado descartável para o grande capital, o FMI e a ONU, particularmente. A OMS lançou uma licitação internacional para a compra de vacinas visando o enfrentamento da epidemia. A Fundação Oswaldo Cruz e o Instituto Finley, de Cuba, associaram-se numa parceria eficiente que produziu, emergencialmente, milhões de doses de vacinas, a preços 90 por cento mais baixos que os do laboratório concorrente, que viria a ser, exatamente, um ente comandado pela Fundação Bill Gates, a mesma que agora premiou o Presidente Lula. Nenhum assessor se dispôs a lembrar Lula sobre o êxito da parceria Brasil-Cuba para salvar vidas africanas, disputando com a Fundação Bill Gates, ora patrocinadora do Prêmio, sendo que as vacinas do bilionário eram 90 por cento mais caras que a cubano-brasileira, revelando “o altruísmo e a generosidade” que guiam seus negócios?
Que conclusões a tirar de tudo isso? O presidente Lula tem muito mais a aprender com o nosso próprio esforço nacional nas áreas de computadores, aeronáutica, indústria automobilística, tecnologias petroleiras, que com essas premiações mais voltadas para a publicidade de produtos de um mega-oligopólio, que jamais se lembraria do nordestino Luiz Inácio se ele não tivesse se tornado, graças aos brasileiros, presidente da república, agora usado, inapelavelmente, para divulgação de produtos desta Fundação, que, por exemplo, cobra 90 por cento mais caro por vacinas que as produzidas pelas parcerias estatais de Brasil-Cuba, essa sim, visando o bem do povo africano.
Para melhor entendimento do que foi o sucesso temporário, mas vigoroso, de nossa indústria de informática e de computadores, depois convertido em “fracasso” pela maquinação dos impérios que, entre outros atores, engendrou o nascimento de Bill Gates e da sua Microsoft, projetando uma supremacia tecnológica predatória e discricionária mundialmente, hoje responsável pela anulação dos processos democráticos e pela disseminação de infinita de ódio, sob a capa de modernidade tecnológica, reproduzo trecho de um artigo do professor Ivan da Costa Marques, ex-presidente da estatal Cobra SA, quando o Brasil, pelo menos nesta esfera de ação, ainda estava decidido a não cair na armadilha do colonialismo digital. Mas, caímos. Não basta o samba do Cartola para nos salvar. Faltam políticas de Estado.
“Finalmente, a análise aqui oferecida ressalta que a experiência da reserva de mercado, ao contrário do que leva a crer a imagem que atualmente habita o imaginário dos brasileiros, representou uma interação positiva entre os princípios democráticos e um projeto de desenvolvimento tecnológico do país. A comunidade de profissionais brasileiros de informática da década de 70 tornou-se um coletivo crítico e politicamente ativo, aproveitando as primeiras brechas do processo de abertura, a chamada “democracia relativa”, que a ditadura militar não pode evitar. Foi a partir da intervenção dos coronéis do SNI, em 1979, que a política de informática brasileira divorciou-se do rumo da abertura política, isolando-se do resto do país. E, enquanto seu período democrático pôde ser claramente associado ao seu “sucesso” como instrumento de incentivo ao desenvolvimento tecnológico local, seu fechamento autoritário arrastou-a inexoravelmente para o seu hoje emblemático “fracasso”.