O sorriso do mau
Má harmonização facial e assédio sexual enterram odontologia em Minas

Minas Gerais, terra de Tiradentes, vive uma deplorável e triste história que balançou a classe odontológica do Estado. A situação chegou a tal ponto que foi incorporado ao extenso vocabulário dos mineiros um velho provérbio italiano que define o sorriso como “uma grande arma do ser humano”. É claro que se está fazendo referência a algo bom, leve e positivo. Afinal, sorrir é sinal, na maioria absoluta das vezes, de incontida alegria.
Mas entre os mineiros a palavra “sorrir” vem perdendo seu sentido, já que diversos pacientes de vários dentistas sofreram gravíssimas lesões devido à falta de fiscalização do Conselho Regional de Odontologia de Minas Gerais (CRO/MG), então presidido pelo controvertido dentista Raphael Mota, que durante sua gestão negligenciou qualquer tipo de fiscalização.
Coube a Raphael, através de uma jurisprudência temerária e perigosa, autorizar dentistas a realizarem procedimentos estéticos sem a capacidade necessária para tal, colocando a vida de milhares de pacientes em altíssimo risco. Centenas de pessoas tiveram seus rostos deformados, suas bocas desfiguradas, suas vidas acabadas. Os tribunais mineiros estão congestionados de processos judiciais relatando o drama de mulheres e homens, jovens e idosos, vítimas da imperícia e da incompetência, que sequer saem de suas casas, que tiveram suas faces deformadas.
Lá está a marca da irresponsabilidade do Dr. Raphael Mota. “Se você ler os processos e ver as fotos das pessoas que foram deformadas, você passa mal e tem vontade de chorar”, revela advogado que patrocina três das vítimas, sentado com nossa reportagem num restaurante do tradicional Edifício Archangelo Malleta, na Rua da Bahia, em pleno centro de Belo Horizonte.
“Esse Raphael não é só um sujeito irresponsável, ele é criminoso! As digitais dele estão em cada procedimento mal feito, em cada rosto desfigurado. Como é que os dentistas escolheram um alucinado para comandar a categoria?” – indaga o jurista, pontuando com vigorosos tapinhas na mesa da afamada Cantina do Lucas.
“Olha, a família de uma das vítimas que patrocino quer que se exija um teste de sanidade mental no Raphael Mota. É uma moça que chora de manhã, de tarde e de noite e se recusa a sair de casa, tem vergonha do que fizeram no seu rosto! Ela cobriu todos os espelhos da casa com panos e cartolinas. A situação é dantesca! Eu e minha equipe estamos preparando uma fornida petição para comprovar que esse indivíduo é um demente.”
Tudo pelo poder e nada pela vida
Ostentação e muito luxo marcam o estilo do poderoso Raphael. As investigações mostram que enquanto pessoas ficavam com marcas indeléveis no rosto, deformados para sempre, o então presidente da CRO/MG usava o dinheiro desviado das fiscalizações e os carros oficiais da entidade para frequentar prostíbulos e lá comandar animadíssimas festas.
É fundamental lembrar que os Conselhos Federais de entidades (odontológicas, médicas, etc…) são autarquias federais, portanto nelas circulam recursos públicos e estão sujeitas à rigorosas inspeções do poder público. Em assim sendo, em agosto de 2024 foi decretada a intervenção que comprovou como era orquestrado todo um evidente esquema de corrupção. O sistema de auditoria e compliance detectou desvios de recursos oficiais, pagamentos de absurdos acordos judiciais para que não se fiscalizassem os dentistas que realizavam as tais harmonizações faciais e, inacreditavelmente, torna-se pública a dramática história de um comprovado assédio sexual.
Mas, como alguém como Raphael Mota chegou à presidência do forte Conselho Regional de Odontologia do importantíssimo Estado de Minas Gerais? Como um indivíduo com claros desvios de conduta e de caráter conseguiu amealhar tanto poder?
Foi com uma brecha no estatuto e o descontentamento geral com o então presidente Alberto Magno, de quem Raphael era o melhor amigo e o braço direito. Traindo-o, ele se tornou o presidente sem grandes esforços e com boa aceitação por quase a totalidade da classe naquele momento delicado.
“Alberto Magno caiu com um sopro, como um castelo de cartas. E foi o Raphael que soprou com vontade e força”, rememora uma dentista de Divinópolis.
Um presidente sedento por poder político, riqueza material e status social – assim podemos definir Raphael, homem que parece carregar com ele a ideia de que “vale tudo pelo poder e pelo dinheiro”, até mesmo desafiar o Conselho Federal de Odontologia (CFO) e autorizar os dentistas a realizarem delicadas intervenções estéticas. Toda sua manipulação em nome do poder e da riqueza material trouxe a divisão e a discórdia à categoria até então unida e respeitada.
Promiscuidade e promoção pessoal marcaram sua passagem pelo poderoso conselho que congrega a odontologia mineira. Exposição de sua imagem através de outdoors, vida social movimentada, frequência cotidiana à bons restaurantes e comentadas idas aos grandes prostíbulos do Estado (com registros nos aparelhos de GPS de automóveis oficiais do CRO comprovando visita à conhecidas casas de sexo). Um antigo motorista do CRO/MG, às gargalhadas, recorda festinha de embalo na região do Triângulo Mineiro: “Todo mundo sem jaleco, peladão mesmo” – ressalte-se, com o dinheiro desviado da entidade…
Mas pagar orgias, relacionar-se com garotas de programa usando o dinheiro público, já não era o suficiente e o insaciável Raphael passou a assediar funcionária do Conselho. Foi expedida pela justiça mineira medida protetiva conseguida por uma colega de profissão, que atuava na direção do CRO/MG diretamente com Raphael Mota.
Tempo ruim para a Dra. Bomtempo
O então presidente do Conselho Regional de Odontologia iniciou um processo de perseguição que tornou-se o assunto mais comentado no CRO/MG e no meio odontológico.
A situação chegou a tal ponto que a dentista Natália Bontempo (que atuava como assessora de comunicação do CRO) tomou a decisão de “fugir” para os Estados Unidos, levando junto a filha menor de idade.
Todos os que trabalhavam no Conselho recordam-se do desespero que tomou conta da Dra. Natália e do sofrimento de seus familiares e amigos. Seu processo contra o assediador corre em segredo de justiça, porém a medida protetiva determinou uma distância mínima para que Raphael Mota não se aproxime da vítima de seu comportamento claramente transtornado.
A vida da dentista foi revirada de cabeça para baixo: “Natália emagreceu muito, vivia pelos cantos chorando, mudou de endereço, tirou a filha do colégio e trocou o número do telefone várias vezes tentando evitar a verdadeira caçada humana da qual foi alvo”, recorda uma funcionária do Conselho.
“Raphael destruiu a vida de Natália e de sua família também. Ela é uma mulher séria, muito correta, com vida impecável, então ela não sabia sequer o que fazer diante de um alucinado que a queria como amante. E ela só teve um pouco de sossego quando foi à polícia, o denunciou e abriu o processo judicial. Ele pouco se importou com tudo isso e continuou a infernizá-la. A paz só veio com a fuga para o exterior”, salienta.
Hoje a Dra. Natália e sua filha, protegidas pela justiça, vivem modestamente num país estranho a eles, longe de familiares e amigos, com as marcas indeléveis de um processo de tenebroso assédio.
Buscamos a vítima nos Estados Unidos e, resguardando a segurança dela, não publicaremos a cidade onde vive com sua filha. Amigos da Dra. Natália Bomtempo nos ajudaram a tentar um contato. Fechada em copas, profundamente marcada pelo pesadelo em que o ex-presidente do CRO/MG transformou sua vida, a dentista tenta reconstruí-la, criando sua filha longe da terra natal e buscando superar aquela que já disse aos amigos ter sido a pior fase por que passou.
Natália, segundo informam amigos seus, nada tem a dizer fora das denúncias transformadas em robusto processo judicial, esquivando-se de qualquer contato com a imprensa. Nossa equipe de repórteres, em respeito à decisão da dentista, não insistiu em ouvi-la. Entretanto, uma sua amiga, dentista em Ibirité, na região metropolitana de Belo Horizonte, expressa com objetividade o que se passou:
“Raphael transformou a vida dela num inferno. Era assédio as 24 horas do dia, sem trégua, usando tudo o que você pode imaginar. Coisa de um obcecado! Foi obsessivo, mesquinho, mau. Ela só suportou tudo por que ama muito a filha e a educa com muito zelo”. A dentista vai mais além: “Hoje ela está firme e forte, cuidando da garota e buscando superar tudo pelo que passou. Quando saiu daqui ela estava um trapo, arrasada, se segurando. Ela me contou que o Raphael a assediava dia e noite, as vezes com cartões, mensagens no WhatsApp, presentes, flores, cantadas nojentas e pornográficas, declarações de amor melosas. E sempre assinava como ‘Dom Raphael, o venturoso’”.
Montes Claros, o berço do mau
Montes Claros é uma grande cidade, situada no extremo norte de Minas Gerais. Polo industrial, pecuário e centro universitário, com vida social e econômica movimentadas, tem perto de 500 mil habitantes, e é o principal centro urbano de uma região de mais de 3 milhões de pessoas. Nem o calor sufocante consegue tirar a imensa simpatia de sua população e o charme de boa cidade, com restaurantes, bares, vida cultural, shopping center e aeroporto servidos por vários voos. Em Montes Claros vive e clinica o dentista Raphael Mota.
Nossos contatos foram infrutíferos, não tendo ele respondido nenhuma mensagem deixada por nossa reportagem. Ele tornou-se conhecido na cidade desde que assumiu a presidência do CRO mineiro. Antes, era um rosto perdido na multidão. Segundo um colega jornalista local “esse rapaz faz parte daquela folclórica categoria conhecida como ‘arroz de festa’, a dos emergentes sociais que fazem de tudo para aparecerem e serem citados nos jornais, implorando por uma fotografia na página do Theodomiro Paulino, o respeitado e influente papa do colunismo montes-clarense”.
Segundo ele, Raphael topa qualquer parada para aparecer, demonstrando impressionante sede de promoção pessoal, tendo surgido de um momento para o outro: “Não era conhecido, não é de família tradicional ou com dinheiro, não figurava entre os bons dentistas daqui, ninguém sabe de que toca saiu esse coelho. O cara apareceu de um dia para o outro, como um furacão, exibindo poder, dinheiro e status, forçando a barra no circuito dos bacanas do soçaite local no melhor estilo novo-rico. Tudo muito estranho”.
O mutismo dos dentistas de Montes Claros quanto ao colega e conterrâneo parece uma laje de concreto. Nenhum dos que procuramos aceitou falar abertamente com nossa reportagem. Porém, em “off”, são unânimes em desqualificá-lo pessoal e moralmente, ressaltando seu comportamento agressivo e sua conhecida prática de autopromoção constante. No mais, pesado (e temeroso) silêncio.
Um humilde protético local, que assistiu nossa conversa no elegante consultório de um dos dentistas mais respeitados da cidade, talvez tenha levantado o véu de um desejo inconfesso: “O Rapha quer mesmo é ser deputado”, disse com a maior convicção e seriedade. O velho dentista abriu um largo sorriso, como em assentimento.
Corrupção, nepotismo e favorecimento
Um relatório recente expôs irregularidades significativas nas despesas do CRO/MG. A entidade gastou expressivos R$ 3.661.992,26 em eventos, o que representa 50,53% de suas despesas totais com serviços de pessoas jurídicas. Entre as irregularidades comprovadas destaca-se a reativação do benefício “auxílio-terno” que, após ser suspenso em 2021, foi utilizado indevidamente para a compra de vestimentas e serviços de salão.
“Foi uma fase de festas, festas e mais festas, gastando um dinheirão para satisfazer a vaidade do Raphael, sem nenhum ganho objetivo para a classe”, declara um veterano dentista de Caxambu, no sul do Estado, que – como quase todos os ouvidos por nossa reportagem – pede que se mantenha o sigilo da fonte, temendo represálias do belicoso Dr. Raphael Mota, conhecido por ameaçar desafetos e processar judicialmente todos eles em verdadeira escala industrial.
Durante um período de 3 a 4 anos, um esquema fraudulento de vale-refeição causou um desvio estimado entre R$ 1,5 e R$ 2 milhões, realizando pagamentos a funcionários já desligados. Houve também o uso irregular de suprimentos de fundos, com R$ 40 mil em recursos emergenciais sendo utilizados de forma inadequada.
“Corrupção objetiva e clara, caso de polícia”, diz o veterano dentista de Caxambu. “O Raphael comandou o Conselho como se não houvesse amanhã, como se fosse uma propriedade sua, com alma de um daqueles fazendeiros de antigamente. Foi uma fase muito triste para nossa categoria, mas agora a justiça e a polícia têm todos os documentos e provas nas mãos. Ele é um alpinista social, um alucinado por autopromoção. Precisamos segurar o boticão e arrancar sua herança maldita no Conselho Regional, pois ele é um dente podre”.
O sistema de diárias também apresentou visíveis irregularidades, com pagamentos mensais entre R$ 15 mil e R$ 20 mil destinados à conselheiros em dificuldades financeiras, incluindo despesas com viagens injustificáveis.
Em 2022, após o rompimento com a empresa prestadora de serviços Filadélfia, que captava patrocínios para as atividades do Conselho. Aí se reativou a ACAPO, nascida para captação de recursos, operando sem transparência em suas contas. Outro ponto controverso foi o registro da marca “Semana Tiradentes da Odontologia Nacional” em nome de Mota, o que levantou questionamentos sobre apropriação de patrimônio público.
A ACAPO demonstrava funcionamento preocupante: suas reuniões eram realizadas com apenas três participantes, todos vinculados diretamente a Raphael, indicando um controle extremamente centralizado. O fato de as atas serem elaboradas pelo procurador jurídico do próprio Conselho também evidenciava claro conflito de interesses.
Seu sobrinho, sem qualquer tipo de vinculo formal, atuava dentro da CRO/MG com acesso privilegiado, organizou eventos na cidade de Governador Valadares para privilegiar uma conselheira suplente com quem mantém um relacionamento pessoal; além disso o processo de escolha da Qualicorp para ser a fornecedora de planos de saúde ocorreu em apenas uma semana com o recebimento de R$ 200 mil reais para cada conselheiro. Um processo que deveria ser cuidadoso, complexo, cercado de atenção e prolixidade, tornou-se um exemplo da fase lodosa dos anos do “Doutor Raphael”…
Intervenção, uma nova etapa no combate às Irregularidades
Em 20 de agosto de 2024, o Conselho Federal de Odontologia (CFO) estabeleceu a intervenção no CRO/MG após graves irregularidades administrativas, desvio de verbas e relatos de intimidação. “Começou a ruir o reinado absolutista de Dom Raphael I”, observ o Dr. Arnaldo Garroucho, respeitadíssimo líder da classe. “Lancetamos o tumor purulento”, enfatiza o veterano dentista.
A ação, com previsão inicial de 180 dias, apresentou efeitos positivos imediatos: redução de gastos de R$ 3,44 milhões e balanço financeiro favorável no encerramento do exercício. O monitoramento também eliminou as queixas de agressões físicas e interrompeu as fatalidades associadas à práticas odontológicas não autorizadas.
Uma lufada de ar puro e fresco invadiu o Conselho Regional de Odontologia de Minas Gerais, até então tomado por estado de adiantada putrefação moral e funcional.
As mudanças incluem cortes significativos nos gastos com celebrações e festas — especialmente em alimentação e solenidades — e a renovação (e higienização) completa da delicada área de licitações. A implementação de protocolos de verificação para compras, junto aos aprimoramentos nos setores de TI, pessoal e assessoria de imprensa, foram
fundamentais para recuperar a credibilidade institucional.
Com a sugestão de estender a intervenção até dezembro de 2025 e realizar o pleito regular em outubro, novas iniciativas estão sendo implementadas, como um canal confidencial para informantes e espaços virtuais para diálogo direto com os profissionais do setor, na busca de mecanismos de melhores práticas.
Paralelamente, o antigo presidente do CRO/MG, Raphael Mota, claramente inconformado, apresentou denúncias ao CFO sobre supostas práticas ilícitas, inconsistências na aprovação de procedimentos estéticos, colaboradores inexistentes e acordos sem licitação.
Contudo, análises detalhadas de suas “denúncias” revelaram ausência de evidências concretas, além de propósitos questionáveis e inconsistências em seus relatos. Mais um feito espetaculoso do imparável “Doutor Raphael”.
A intervenção no poderoso CRO/MG expôs falhas administrativas que comprometeram a reputação da até então respeitada entidade de classe, além, é claro, o bem-estar e saúde bucal de cidadãos mineiros. Milhões de reais perderam-se no labirinto de uma gestão caótica, personalista e eivada de suspeitas. Dinheiro público e dinheiro da categoria dos
odontólogos.
O futuro da instituição depende da manutenção do controle efetivo e da gestão transparente nas próximas administrações. A sociedade aguarda esclarecimentos e ações concretas contra o mar de lama produzido por um mau profissional sequioso por promoção pessoal, poder político e dinheiro, muito dinheiro, onde a saúde e a vida das pessoas foram afetadas de forma criminosa.
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*Colaboraram correspondentes Minas Gerais e Estados Unidos da América
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(Agradecemos aos advogados das vítimas que nos forneceram vasta documentação com o material processual/jurídico que embasou esta matéria jornalística)
