Magnólia, moradora do Lago Sul, desde praticamente toda sua existência, só se lembrava de ter sido dedicada. Fora filha dedicada, irmã dedicada, neta dedicada, mãe dedicada, avó dedicada, há mais de 40 anos, para inveja de todos, também era uma esposa dedicada. Nelson, o marido, havia feito uma pequena fortuna graças ao tino comercial, talvez herdado dos seus antepassados, parte judeu, parte turco.
Como matriarca daquela enorme família, todos os anos era sua responsabilidade servir a ceia de Natal. E que ceia! Comida sortida para gostos variados. Se alguém não gostasse do bacalhau, se servia do pernil assado; se por acaso tivesse alergia a nozes, eis que logo ali poderia se fartar com frutas diversas da estação.
Sorrisos pra cá, gargalhadas pra lá, cochichos acolá, todos pareciam se divertir à generosidade de Magnólia e Nelson, o casal perfeito, que todos invejavam e almejavam se tornar. Que lindo de se ver! Mais de quatro décadas de harmonia! Ninguém se lembrava de uma só briga entre aqueles dois velhos pombinhos. Na verdade, nem mesmo Magnólia era capaz de se recordar de uma, simplesmente porque nunca havia acontecido.
Fim de mais uma festança daquelas! Nelson e Magnólia pareciam satisfeitos por mais um encontro da família. Eles trocaram olhares, como cúmplices de algo que sabiam ter conseguido preservar, apesar daquele aparente inabalável quase meio século. Era a tradição se perpetuando naquele lar, doce lar. Tamanha felicidade que poderia ser sentida por toda cidade.
Nelson parecia ainda mais feliz, cofiou de leve o fino bigode e, ao subir os degraus da escada em forma de caracol, lançou um olhar, apesar de gasto, ainda sedutor para Magnólia. Esta, acostumada àquela situação, tratou logo de retocar o perfume para se deitar ao lado do esposo. Tiveram uma noite quase de núpcias, se não fossem pelos corpos já definhados pela longa jornada.
O marido despertou e logo percebeu que o calor do outro lado do colchão havia se evaporado. A princípio não estranhou, até que notou um bilhete cuidadosamente depositado na mesinha ao seu lado. Antes de tocá-lo, imaginou que se tratava de dizeres apaixonados da Magnólia. Todavia, um aperto no coração quase o enfartou ao ler as poucas palavras escritas por aquela letra tão conhecida: “Nelson, cansei! Cansei de tudo! Cansei de fingir essa tal felicidade que nunca tivemos!”. nunca mais ninguém ouviu falar de Magnólia.