Tortura
Mania de perfeição leva a gestos escondidos e a cacos de vidro na mão
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Jacó, um amigo que conserta tudo – de cano furado a disjuntor queimado – veio em casa instalar um quadro. Fez as marcações na parede, mediu tudo direitinho e colocou a furadeira pra atazanar o vizinho.
– Aqui está bom?
– Não, um pouco pra direita.
– E agora?
– Abaixa um tiquinho à esquerda.
– Assim? – perguntou finalmente Jacó, com paciência de Jó.
– Deixa eu olhar de longe. Ficou bom – eu disse, sem convicção.
Este é o resumo. Não foi bem assim. Para chegar ao alinhamento perfeito, levou quase hora. Frações de milímetros impediam a conclusão do trabalho – e o Jacó suando. Mania de perfeccionista. Sou desses.
Não chega a ser TOC, já pesquisei. Mas sempre procuro a simetria. Agora mesmo olhei pela janela e vi uma das arandelas do jardim torta. Fui endireitar.
No corredor do escritório, uma gravura às vezes fica fora do eixo depois que a moça da limpeza passa. Sempre que busco o café dou jeito de arrumar, discretamente, para que os colegas não me achem maníaco.
Situação difícil passei na casa de um amigo. Conversávamos na sala lindamente decorada com tapetes vistosos e movelaria impecável. Bem na minha direção, atrás dele, tinha um quadro. Um quadro irritantemente descaído à direita. Uma tortura. O descuido decorativo me tirou a concentração da conversa.
– Você está bem? – me perguntou o amigo.
– Sim, só preciso de uma água.
Nem estava com sede, só queria que ele fosse à cozinha a tempo de corrigir aquela aberração. Ele foi. Eu fui arrumar o quadro, que tinha uma fotografia da família e tela em vidro. Ao meu primeiro toque, o infeliz escorregou: platf!
Quando o copo d’agua chegou, eu estava com os cacos do quadro na mão, querendo o buraco da parede pra me esconder…
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