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Manuel, pastor, engole palavrões em culto após chegada de Exu

Manuel era pastor. Cuidava de ovelhinhas crentes em um templo neopentecostal da periferia paulistana.

Ele não era um bom pregador, longe disso, e tinha um conhecimento superficial da Bíblia. Tampouco brilhava entre os recolhedores de dízimos, capazes de extorquir o último centavo de um irmãozinho desempregado, que ainda pedia desculpas por doar uma merreca. Mas não havia ninguém que atacasse com tanta veemência os cultos afro-brasileiros quanto Manuel. Sabia o nome de todos os exus, sua hierarquia e suas qualidades.

Tamanho furor começou a incomodar o mensageiro dos orixás.

“Carinha sem-noção”, pensou Exu. “Não sabe que foi dedicado a mim desde criança.”

Era verdade. A mãe de Manuel era devota dos orixás. Quando ele nasceu, esteve muito doente, correndo perigo de vida, e a mãe o confiou a Exu e Obaluaê, o primeiro desbravador de caminhos e o segundo, protetor dos enfermos. O jovem convertido ao neopentecostalismo reprimiu essas memórias, assim como se esforçou para apagar qualquer recordação de haver frequentado, com a mãe, terreiros de candomblé.

Exu resolveu entrar em cena numa noite em que Manuel estava na ponta dos cascos, mais feroz do que nunca. Ele já havia dito que havia entradas pro inferno no fundo dos rios, sob as cachoeiras de Oxum; que Xangô golpeava com seu machado os cristãos enquanto dormiam e por aí seguiu, desembestado. Mas quando falou que Oxalá era um velho impotente – dando um risinho sacana e dobrando o indicador, para que ninguém tivesse dúvida do que estava sugerindo –, foi demais para Exu. Ele se aproximou do pastor, sacudiu-o com força e montou em seu cavalo.

– Que porra é essa? – gritou Manuel, tropeçando e assustando os irmãozinhos. Por um momento, as exclamações de Aleluia! e outras do mesmo naipe silenciaram. Mas, afinal, “porra” não é exatamente palavrão.

O pastor recuperou o equilíbrio e se dirigiu às ovelhas:

– Meus irmãos, vou lhes ensinar uma palavra que resume o que venho pregando. Ela expressa a realidade desses cultos do demônio. É a palavra cambuta, que significa bando de macumbeiros filhos da p.

Foi demais para as ovelhas. Algumas irmãs desmaiaram, ou fingiram que.

Os louvores ao Senhor Jesus cessaram momentaneamente. Mas o pior estava por vir. Manuel assumiu um ar professoral e soltou os cachorros.

– Vocês podem usar o termo cambuta para qualificar qualquer coletividade de filhos da p.: cambada de macumbeiros, como falei antes, mas também, forçoso admiti-lo, cambada de crentes filhos da p.

A cada palavrão pronunciado pelo burro de Exu, os irmãos tremiam nas bases. Mas quando cambuta os qualificou, foi a gota d’água. Mulheres desmaiavam, dessa vez sem fingimento, enquanto alguns homens ameaçavam cobrir de porrada aquele pastor do demo.

Nesse momento, Sebastião, um homem negro de uns 70 anos, decidiu intervir. Ele também vinha de uma família que cultuava os orixás.

Contudo, à diferença do pastor, não desprezava as crenças de seus pais e avós; havia apenas mudado de religião. Ele não concordava com as declarações de ódio de Manuel e, no fundo, orgulhava-se de ser filho de Oxalufã, Oxalá Velho, o mais venerado dos deuses do candomblé.

Foi a ele que Sebastião recorreu. Primeiro murmurou: “Desculpe, Senhor Jesus, mas é uma emergência”. Em seguida, saudou Oxalá com as palavras rituais Epa Babá! e ofereceu seu corpo para a incorporação da divindade.

Quando o orixá baixou, Sebastião/Oxalufã caminhou em direção ao pastor boca-suja. Aquele negro imponente, de barba branca, rosto fechado e olhar severo, parecia o próprio Oxalá, não apenas o seu cavalo.

Sebastião/Oxalufã segurou Manuel/Exu pelo braço e falou baixinho:

– Pare já com essa baixaria.

Exu curvou-se em reverência ao maior dos orixás e subiu, deixando Manuel estatelado no chão, sem saber o que havia acontecido.

– Removam esse traste – disse, apontando para Manuel. Em seguida, aproveitou a oportunidade para lembrar que muitos crentes eram afrodescendentes, tais como ele, e não deviam ridicularizar ou odiar a religião de seus ancestrais. Palavras de tolerância eram raras ali.

De repente, ele pareceu perder o equilíbrio mas se recuperou. Olhou para os irmãos e irmãs como se os visse pela primeira vez e sorriu timidamente. Oxalufã havia partido, e Sebastião encarava, sozinho, os crentes que haviam permanecido no culto apesar das baixarias do pastor.

Desde a “noite dos palavrões”, algumas coisas mudaram no templo. Nunca mais houve pregações de ódio dirigidas contra os ritos afro-brasileiros.

Os preconceitos subsistem, mas em silêncio, guardados dentro do peito, o que não chega a ser tão ruim. Sebastião até agora conseguiu ignorar os apelos insistentes para que se proclame pastor e guie suas ovelhinhas. E Manuel, proibido de pregar, foi relegado à posição de assistente dos recolhedores de dízimos. Ele sente que foi um participante involuntário de um evento misterioso, paranormal, mas nem conhece essa palavra; o jogo de búzios poderia esclarecê-lo, mas ele jamais conseguirá a coragem necessária para se envolver com o que ainda considera (embora não ouse falar sobre o assunto) “coisa do capeta”.

Antes que me denunciem por plágio, admito: este conto foi inspirado em um texto de Jorge Amado, no livro Pastores da Noite. O romancista usa como cenário uma igreja católica; pensei que seria divertido transpor a cavalgada dos orixás em seus cavalos (ou burros) para um templo neopentecostal, alguns dos quais estão ficando tristemente famosos pelo ódio que destilam contra os cultos afro-brasileiros.

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