Houve um tempo em que as marchas, passeatas e manifestações alusivas ao Dia do Trabalhador eram destinadas à luta por mais empregos, condições dignas de trabalho, melhores salários e, sobretudo, contra as desigualdades e o arbítrio. Multidões saiam solidariamente às ruas em busca de valores verdadeiramente patrióticos e de um Brasil que fosse de todos. O povo podia ser denominado de esquerda, mas nunca de fascista ou de extremista. Foi-se o tempo em que havia respeito e que os protestos buscavam ideais, liberdade de expressão e tranquilidade para ir e vir. Tecnologicamente vivíamos um atraso de dar dó àqueles que nos dominavam. Éramos atrasados, mas tínhamos certeza de que viraríamos o jogo. Viramos e, justamente por isso, o país deixou de ser igualitário. Algumas décadas e apenas dois anos e quatro meses de um governo claudicante foram suficientes para desfazer sonhos e apagar desenhos futuristas.
Pior são as tentativas de tentar jogar no lixo conquistas tecnológicas invejadas por boa parte da comunidade internacional considerada melhor situada intelectual e economicamente. Pouco mais de 35 anos após o fim do arbítrio, hoje, em protestos motorizados, pessoas fantasiadas de patriotas e sob supervisão aérea e benevolente do líder ameaçam a democracia e defendem a intervenção militar, a violência, a invasão do Supremo Tribunal, o amordaçamento da imprensa, o fechamento do Congresso e o esquecimento da urna eletrônica como bem material de 212 milhões de brasileiros. Também pregam o fim do uso da máscara facial, das medidas protetivas e do fechamento, parcial ou total, daquelas localidades onde a pandemia contribuiu para espalhar o cheiro da morte. Só não explicam o pavor da CPI da Covid-19. Será que, para os olhos ordeiros e democráticos do planeta, isso é bonito, é exportável?
Foi-se o tempo em que, a exemplo das Forças Armadas, da Igreja e dos clubes de futebol, respeitavam-se patrimônios nacionais, entre eles o atual sistema eletrônico de votação. Representado por centenas de violentos extremistas, o governo tentou jogar para as calendas o censo demográfico deste ano. Felizmente, o STF revogou a decisão. Estranhamente, é o mesmo governo que, por meio do voto impresso, quer impor um censo eletrônico. No Palácio do Planalto, nas lives e nos gabinetes retrógrados do Congresso Nacional e da Esplanada dos Ministérios o assunto é imorrível. A tese de quem pensa assim é a “pouca transparência” do Tribunal Superior Eleitoral. Considerando que todos que detêm mandato eletivo foram eleitos com a maquininha do TSE, minha argumentação é inversa: o que eles efetivamente combatem é essa inquestionável transparência.
Já li afirmações do presidente sobre a lei, que determina votação secreta e apuração pública. Ele cobra a certeza de que o voto no João será mesmo contabilizado para João. Parece elementar, mas o chefe do governo e apoiadores não abrem mão de saber quem votou no João. Afirmo isso porque só há uma hipótese de o voto no João não cair na conta corrente do João: alguém mentir que votou no João para esconder um caso afetivo com José. Fora isso, é tecnicamente impossível, com a mesma clicada, uma mesma pessoa “penetrar” simultaneamente na urna ou em João e José. Sabidamente, antes, durante e depois da votação o TSE permite todo e qualquer tipo de aferição. E, ao contrário das denúncias de fraudes sem provas, são fiscalizações públicas, com a presença de dirigentes, parlamentares e fiscais de partidos, além de técnicos e representantes da OAB e do Ministério Público.
Em síntese, não há necessidade alguma de se acoplar à urna eletrônica nova gerigonça para auditar o voto. O sufrágio passa ser auditável tão logo é digitado e registrado no equipamento. Ponto final. Como ocorreu nos Estados Unidos, o assunto é um belo ensaio para uma provável iminente derrota. Todos lembram de Donald Trump questionando até o último juiz norte-americano a ascensão de Joe Biden. Ficou no esperneio e, pelo visto, na escuridão do esquecimento. Aliás, adormecido por logo tempo, a fake news voto impresso voltou a frequentar o ideário bolsonarista justamente após a esmagadora vitória de Biden. Culpa do sistema? Claro que não. Apenas e tão somente falta de votos. Além dos sufrágios, faltaram provas a Trump para justificar as acusações ao processo eleitoral dos EUA. Como faltam e faltarão aqui.
Na época, respondendo ameaças públicas do chefe do Executivo, para quem o Brasil terá problema pior do que os Estados Unidos caso não tenha voto impresso em 2022, o presidente do TSE, ministro Luiz Roberto Barroso, lembrou que “governantes democráticos não devem fazer acenos para desordens futuras”. Espera-se que, corajosa e democraticamente, o Congresso vete insanidades como essa. Além de colocar em risco o sigilo e a liberdade do voto, a proposta geraria ao erário um custo adicional da ordem de R$ 2 bilhões e não implicaria qualquer valor à segurança da urna, que, desde sua implantação, em 1996, jamais registrou um caso concreto de fraude.
Em um país sem recursos para comprar vacinas e kit intubação, gastar essa dinheirama somente por diletantismo é a própria fraude. Como não há o que temer, sugiro que a direção do TSE disponibilize o equipamento para verificação dos hackers “convidados” pela deputada Bia Kicis (PSL-DF) e dos demais defensores do retrocesso. Eles não irão, pois sabem que nada encontrarão de irregular. O que eles querem? Além de tumultuar o processo e justificar o injustificável, tentam um passaporte para as desculpas. Simples assim.