Afastada dos estúdios desde 2011, Marisa Monte. O último trabalho foi o elogiado O Que Você Quer Saber de Verdade, lançado há 10 anos. Mas, de lá pra cá, conforme a própria cantora enumera, foram ao todo sete projetos e, ao menos um deles, o álbum Tribalistas, de 2017, algo de caráter criativo e, embora feito em trio com Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown, também autoral. Sendo assim, é quase alimentar uma fake news dizer que Marisa esteja longe das criações há 10 anos.
Seu lançamento de agora chama-se Portas. Um álbum grande para a era dos singles e dos feats, com 16 canções em parcerias e algumas com luxuosos arranjos de cordas (de Arthur Verocai) e de sopros. Há parcerias com os também tribalistas Arnaldo Antunes e Dadi, como a faixa que batiza do disco; um belo samba de carnaval portelense com Pretinho da Serrinha chamado Elegante Amanhecer; uma canção de amor com Marcelo Camelo de nome Você Não Liga; e muitas parcerias com Chico Brown, filho de Carlinhos. Musicalmente, Portas é um álbum cheio de sol, de cores e otimismo, com letras sobretudo em tons de esperança, mesmo nos desamores.
Marisa entra com ele também nas práticas de produção digital. Muitos convidados e músicos contratados enviaram suas partes gravadas de outros estúdios, uma dinâmica que não lhe era usual. “Meu plano era entrar em estúdio em maio de 2020. Eu já tinha um repertório pronto, produzido ao longo dos últimos anos com diversos parceiros, esperando a hora de gravar. Mas, em março, as portas se fecharam e ficou impossível seguir. Como todo mundo, entramos numa inevitável pausa de mil compassos. Passaram-se alguns meses até que a gente pudesse compreender melhor a nova realidade protocolos sanitários, testes e máscaras”, Marisa diz em um breve resume de como seu disco começou a ganhar forma, atropelado pelo início da pandemia.
Em declarações ao Estadão, ela abordou a tecnologia nos dias de gravações confinadas. “Ela acabou se tornando um grande aliado de todos, um reforço.” Foi por meio da internet que Marisa chegou aos trabalhos da artista plástica Marcela Cantuária, por exemplo. O frescor de sua obra acabou sendo usado para dialogar com as músicas do disco na versão digital do trabalho. “Eu senti muita sensibilidade em seu trabalho, cheio de características latino-americanas, feminina e feminista, com temáticas voltadas para a natureza também. Tudo isso estava no álbum. Ela foi ouvindo as músicas e me conhecendo.” O resultado da junção das canções com a obra de Marcela resultou no que Marisa chama de “álbum visual”. “Na internet os discos ficam mais versáteis do que nos tempos do CD e dos LPs, que eu também gosto.”
Marisa diz que o retorno a um disco autoral depois de 10 anos “não foi nada pensado”. É quando ela faz as contas e alerta para a quantidade de bons álbuns que fez, mesmo não sendo frutos de suas criações. “Fiz uma turnê com Paulinho da Viola, por exemplo. E depois veio o disco com os Tribalistas que, mesmo sendo coletivo, é também, do meu ponto de vista, uma obra toda inédita.” Mas agora, como Marisa já havia dito no início de 2020, era o momento de a cantora voltar a si mesma. “Mas não foi mesmo uma coisa planejada. Algumas ideias acabam se sobrepondo às outras.”
Sua ideia inicial era viajar para os Estados Unidos e formar uma segunda banda, em Nova York, algo que se tornou impossível. Mesmo sem ter feito outros discos distanciada dos músicos, ela achou que valia a pena experimentar uma gravação remota. Arto Lindsay levou sua banda a um estúdio na Rua 37, em Nova York, e lá gravaram as bases de Calma e Portas, enquanto Marisa cantava via zoom de outro estúdio, no Rio de Janeiro. “Para nossa surpresa, deu muito certo e nos abriu um novo universo de possibilidades. Aquilo nos deu confiança de seguir com gravações remotas em outras cidades e com outras formações também.”
E assim foi. Ainda do Rio, Marisa e os músicos que faziam bases, complementos e arranjos do maestro Arthur Verocai e do trombonista Antonio Neves se uniram digitalmente às gravações remotas feitas em Lisboa (para registrar, por exemplo, alguns arranjos de Marcelo Camelo) e de Los Angeles. Uma outra música ainda não lançada, e gravada também remotamente, foi Vento Sardo, registrada em Madri e Barcelona por Jorge Drexler. “Apesar de estar pronta e fazer parte do corpo desse álbum, decidimos lançar a posteriori, como um single, quando pudermos nos encontrar ao vivo”, conta Marisa em um texto de apresentação.
Marisa Monte gosta de parceiros e tem um histórico deles, muitos homens e raras mulheres. A mão de Arnaldo Antunes fica explícita onde quer que toque, como acontece com Vagalumes e mesmo na faixa-título Portas, com uma letra com uma divisão rítmica tipicamente arnaldiana, apesar do alto grau de comunicação pop. É singela, sem crises existenciais nem protestos políticos, e talvez seja essa característica o que mais chame a atenção no álbum. A letra diz assim: “Nesse corredor / Portas ao redor / Querem escolher, olha só / Uma porta só”. Quase infantil, no melhor sentido.
Outra canção que parece colidir com os tempos é o primeiro single, Calma, feita há três anos. É estranho ouvi-la nos dias em que o país afunda em escândalos de possíveis negociatas envolvendo compras de vacinas com mais de 550 mil pessoas levadas pela pandemia. A letra diz: “Calma / Que eu já tô pensando no futuro / Que eu já tô driblando a madrugada / Não é tudo isso, é quase nada / Tempestade em copo d’água.” Mas Marisa explica: “Minha resistência é poética e amorosa.”