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Trauma de rato

Medo até de roedor morto deixa Raquel presa em casa

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Produção/Irene Araújo

Raquel, talvez por conta das inúmeras histórias de ratos devoradores de criancinhas, a maioria contada por sua avó, cresceu com medo desses roedores. Aliás, medo, não. Pavor! E com direito a gritos desesperados só de ouvir pronunciar o nome desse bicho dos esgotos. Cruz credo!

Já mulher feita, juntou os panos com Julião, um trabalhador braçal como tantos outros daquela parte da cidade. Ele se encantou por aqueles olhos faceiros logo de cara. Tentou por uma, duas vezes, mas nada. Tentou uma terceira e, provavelmente, teria insistido outras mais, caso Raquel, finalmente, não tivesse aceitado o convite para tomar sorvete na praça. Ela não só aceitou, como gostou daquelas mãos, calejadas é verdade, mas que também sabiam ser meigas.

A harmonia, que nem roda de samba, imperava na humilde residência do casal. A vida era dura, com suor de segunda a sábado, mas, uma vez por semana, sempre surgia um domingo. Tempo de relaxar e curtir, inclusive em confraternizações com os vizinhos, geralmente regadas a cerveja e um bom pedaço de carne na brasa. Só felicidade!

Mas alegria de pobre tem lá seus percalços. Pois é, e o último aconteceu logo após o quarto dia de greve dos garis. Questões salariais e de insalubridade, que tornavam o trabalho ainda mais desgastante.

A prefeitura comunitária até prometeu manter o serviço, mínimo que fosse, enquanto a greve durasse. No entanto, talvez por uma falha na comunicação, esse mínimo nunca contemplou aquele bairro tão afastado. O resultado foi um mundaréu de lixo e, de lambuja, as ruas ficaram inundadas de ratos.

A situação chegou a ficar calamitosa, a ponto de até os ratos disputarem a tapas cada metro quadrado ao redor das lixeiras, que transbordavam os restos dos moradores. Raquel, então, nem colocava a pontinha dos pés para fora de casa.

Passada a greve, ainda assim, o recolhimento de todo o lixo levou quase duas semanas. Coisas que acontecem em bairros longe do centro. Demorou, mas até que ficou apresentável. Entretanto, os ratos demoraram um tempo para perceber que aquela fartura havia ficado no passado. No final, todos foram embora. Isto é, quase todos, já que restava o último da família, provavelmente abandonado pela trupe.

Vez ou outra, o focinhudo surgia do nada e era aquele alvoroço. Um corre-corre daqui, um corre-corre dali. Alguém até pensou em pegar a soca-soca pendurada na parede da casa do velho Tião. Que nada! Aquilo era objeto de decoração, não tinha nem furo no cano. Só se fosse para tacá-la no pobre roedor.

Não se sabe como aconteceu, mas aconteceu, pois, dois dias após a última aparição da criatura, eis que ela surgiu estatelada ali bem em frente à residência da Raquel. Pra você ver, justamente na residência de quem mais temia um confronto tête-à-tête com o roedor. Seja como for, o rato partiu para o além. Ninguém soube qual a causa mortis do dito cujo. Quem sabe foi por saudade da parentada ou, então, ataque fulminante diante de tanta gritaria?

Julião tratou logo de colocar o defunto em um saco preto. Com uma ponta de alívio, outra de nojo, jogou os restos mortais do dentuço na lata de lixo. E, assim, parecia que tudo estava resolvido, até que ficou encucado com a recusa da mulher em passar pela porta da frente da casa.

– Por que não está mais usando a porta da frente?

– Por causa do rato.

– Raquel, já faz mais de mês que joguei aquele bicho fora.

– Sei disso, mas a imagem dele ainda está ali.

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