Bando de corcundas
Melhor amigo nos alivia no mundo moderno que nos deixa curvos
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emBorrifo citronela no balcão branco onde repousam meu notebook e alguns preguiçosos pernilongos. Eles nos adoram – ou odeiam – porque resolvemos morar perto da única mata da cidade.
Neste curto período de descanso, comecinho de ano, procuro contemplar a sonoridade da pequena cascata que colocamos no jardim, cujas plantas enxergo da banqueta onde me acomodo para escrever. Só não é mais relaxante por causa do rangido da geladeira.
Ajeito a postura na esperança de escapar da “sina do cocuruto”, pois algumas pessoas da família carregam na coluna, bem perto do pescoço, uma protuberância que lembra cupim e se agrava com a idade.
Depois da praga do celular, até jovens andam padecendo do mesmo mal, sem carga hereditária que o justifique. Nas ruas, estações de ônibus e restaurantes, formamos um bando de corcundas procurando coisas normalmente inúteis em pequenas telas digitais.
Ando me cuidando. Estico a cervical sempre que lembro, encolho o umbigo e alongo o pescoço. Dizem que a técnica me fez ganhar quase dois centímetros para cima e perder um dedo na cintura. Dizem…
Alfredo cede sua barriga para recostar meus pés soltos, pois a banqueta é alta, e assegurar o perfeito alinhamento, relaxando a coluna. Não é sacrifício para ele. Suas patas dianteiras brancas – as traseiras têm o mesmo tom do pelo preto – estão sempre ao lado das minhas.
Isso tudo não é suficiente. Fernanda me chama a atenção para que eu aproxime ainda mais a coluna do encosto do banco. Deve estar se precavendo: não vai querer um marido velho e corcunda.
Quero ver quando eu começar a tocar os tambores da nova bateria, aspiração de criança e auto-presente de Natal, sentado no banquinho nada ergonômico. Virão broncas mais agudas que baquetadas nos metálicos pratos dourados.
No balcão branco não há mais pernilongos, pelo menos por meia hora, graças à citronela. O Alfredo foi latir para alguém no portão. A cascata prossegue na suave melodia, ajudada pela trégua do motor da geladeira. Aproveito para esticar as costas porque não quero morrer solteiro…
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Júlio César é contista, cronista, ensaísta e poeta – Instagram: @certascronicas