Notibras

Menino-homem-anão, faca amolada, pulsos cortados… e estátua

Agora não pergunto mais aonde vai a estrada. Agora não espero mais aquela madrugada. Vai ser, vai de ser, vai ser faca amolada. O brilho de paixão e fé, paixão, faca amolada” (“Fé cega, Faca Amolada” – Milton Nascimento/Beto Guedes)

O cara parou na esquina e acendeu o cigarro. Com mãos trêmulas, retirou da carteira o pedaço de papel confirmando o endereço. “Não pode ser outro lugar… esquina da Tavares com a Ipiranga, em frente a casa rosada com duendes no jardim” -, falou sem sons naquele discurso interno de quem sabe que está por um fio. Depois se acalmou. Escondeu-se embaixo da marquise até que a chuva passasse.

Oito da manhã passou o carro da limpeza. Com a água no corpo, o cara acordou e foi pra briga:

– Qualé, mané?! Não tá me vendo aqui, caralho!

Os manés da limpeza ignoraram e seguiram em frente. Molhado, o cara buscou o mercadinho da outra esquina. Entrou, comprou dois pães, uma Coca-cola e veio outra surpresa. No caixa, a moça parecia não enxergá-lo.

– Cobra aí, garota! Tô todo molhado e fodido.

A moça também o ignorou e pediu para a fila andar. O cara passou e seguiu pela rua. Teimoso como sempre fora, voltou àquela esquina da madrugada anterior: Tavares com Ipiranga. A casa rosada estava lá. E com os duendes no jardim.

Desde moleque, o cara acreditava em duendes. Sonhava com eles. Vivia o ano inteiro para, no Halloween, fazer a fantasia de duende. Não um duende qualquer. Era o duende assassino, um serial Killer. Um homem-anão que matava com requintes de cirurgião usando apenas uma faca amolada.

“Deixar a sua luz brilhar e ser muito tranquilo. Deixar o seu amor crescer e ser muito tranquilo. Brilhar, brilhar, acontecer, faca amolada. Irmão, irmã, irmão de fé, faca amolada.”

Naquela manhã, o menino-cara chegou na escola antes de toda a turma. Tudo para esperar Mariana. Ela sempre chegara meia hora antes do fechar do portão. O carro do pai parou. Mariana desceu e entrou no colégio. E nem viu o cara. No portão, pela primeira vez, ele percebeu a sua transparência.

Anos depois, o cara confidenciou a um amigo:

– Velho, me senti um bosta. Era como se eu não existisse. Ela passou pelo portão e nem me viu.

O cara seguiu pela vida transparente. Arrumou um trabalho de mecânico na oficina do Jorge Martelinho de Ouro e aprendeu o ofício. Casou, teve dois filhos, mas a menina Mariana jamais saiu de seus sonhos de adolescente.

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Chegou na cidade uma nova igreja. Neopentecostal: “Os Últimos Dias de Davi”. O pastor era o pai de Mariana. O cara logo foi ao culto. Virou evangélico de carteirinha. Mariana cantava no coro e ele na primeira fila. Mariana jamais o notara. E assim a vida seguiu. E veio o Dia do Halloween. O cara entrou na igreja vestido de “duende assassino” e esfaqueou oito pessoas no palco do culto. Gritava, gritava muito. O pai pastor protegeu Mariana. Restou ao cara bater em retirada. No bolso, o bilhete com o endereço da família de Mariana: Tavares esquina com a Ipiranga, casa rosada com duendes no jardim. O cara pulou a grade do portão e deitou-se ao lado das estátuas de duendes. Cortou os pulsos, morreu ali. Queria ser para sempre um duende de pedra no jardim da moça. E assim foi.

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