Mauro Laviola
Completando 25 anos de funcionamento, o Mercosul padece de velhice precoce. Para não falecer de um mal súbito é hora de repensarmos o propósito e o funcionamento do bloco. Na década de 1990, em meio às crises internacionais de instabilidade financeira, globalização,modelos cambiais díspares, surgimento de países periféricos, reforma da arquitetura financeira internacional –além da criação da OMC, ditando novas regras no comércio internacional– os países do Cone Sul criaram um bloco multiforme como um salvo-conduto regional às intempéries mundiais.
Em 1994, visando sanar a crise econômico-financeira brasileira foi criado o Plano Real de desindexação da economia, enquanto a Argentina adotava a política de conversibilidade do Plano Cavallo, marchando exatamente no sentido inverso. Nesses ambientes díspares nasceu o Protocolo de Ouro Preto, que estabeleceu a criação de uma tarifa externa comum (TEC) em quatro anos, com forte influência protecionista dos respectivos setores privados dos dois países que sofriam as consequências do desarranjo mundial.
A decisão de convalidar a TEC num prazo curto foi precipitada pela inexistência de qualquer tentativa de coordenação de políticas comerciais, convergência dos regimes tributários nacionais e estabelecimento de um código aduaneiro comum, até agora não concretizado. Em março de 2000 os países aprovaram a Decisão CMC 32/00, estabelecendo a obrigatoriedade de os países realizarem acordos comerciais de forma conjunta, visando evitar “fraturas” na projetada união aduaneira, que ainda tentava firmar seus primeiros passos.
Na década seguinte, por falta de preparo prévio, o resultado dessa precipitada ação institucional foi pródigo em descumprimentos das regras estabelecidas. Entramos então na fase das frustradas tentativas de “relançar o Mercosul” como bálsamo milagroso, calcado apenas nas “vontades políticas” dos países membros. Foi a fase mais ilusória do processo, alimentada pelo crescimento exponencial do comércio sub-regional, principalmente pelo crescimento das exportações brasileiras –movidas pela solidez do Plano Real e favorecidas pelos bons ventos da economia mundial.
Contudo, também foi o início das medidas protecionistas adotadas pela Argentina –devido aos percalços financeiros e cambiais decorrentes do Plano Cavallo e do “default” de 2001– redundando em medidas de retaliações recíprocas no bloco.
O desastre institucional e operacional agravou-se com o surgimento do “bolivarianismo” regional, consagrado pela assinatura do Protocolo de Adesão da Venezuela ao Mercosul em 2006, exatamente na fase mais crítica da enorme inadimplência na internalização dos atos comunitários, na permanente perfuração da tarifa externa comum, além dos efeitos negativos da crise financeira internacional de 2008.
Já em 2010, a Argentina inaugurou uma série de medidas administrativas de contenção das importações, adotadas indiscriminadamente para todo o mundo, incluindo seus parceiros regionais. Como agravante, floresceu o movimento intencional de transformar o Mercosul num organismo político por excelência, somando-se às inutilidades regionais como Unasul, Alba, Calc, Celac.
Sem dúvida, a partir daí, floresceu um ambiente contraditório aos interesses empresariais da região, agravado pelo imbróglio institucional e operacional resultante da suspensão do Paraguai, em 2012.
Da ficção à realidade – Esses acontecimentos ratificaram a sensação compartilhada pelos setores empresariais de que o Mercosul havia se convertido num movimento de interesses estritamente governamentais, sob orientação das tendências socialistas e flagrantemente “terceiromundistas” dos partidos políticos que os comandavam.
Felizmente, a situação inerte em que se encontra o Mercosul tende a sofrer uma reviravolta com a mudança de rumo político na Argentina e de uma nova postura realista do lado brasileiro. A próxima reunião de cúpula do Mercosul, em julho próximo, revela-se um momento propício para que os governos desses dois países, guiados por novas filosofias de gestão econômica e relacionamento externo, assumam posturas mais pragmáticas de atuação individual e coletiva que projetem uma aura de previsibilidade aos respectivos setores empresariais, hoje atônitos e desorientados sobre os rumos a serem perseguidos por suas empresas.
A possibilidade de as partes procederem uma revisão no processo de integração do bloco está prevista no Artigo 47 do Protocolo de Ouro Preto, desde que haja moção aprovada por decisão unânime das partes. Como vem ocorrendo na OMC, onde as ações bilaterais e plurilaterais ganharam espaço dominante no cenário internacional, tal estratégia pode representar o ponto de inflexão para o Mercosul passar da ficção à realidade.
Seus integrantes podem acionar o aprofundamento da enorme rede de acordos regionais existente na esfera da Aladi (Associação Latino-Americana de Integração), tanto para acelerar a eliminação de eventuais resíduos tarifários como, principalmente, incluir neles disciplinas consideradas tão importantes quanto a eliminação das tarifas aduaneiras, tais como: eliminação de barreiras não tarifárias; serviços; facilitação de investimentos; convergências regulatórias setoriais; compras governamentais; propriedade intelectual.
Essas são as disciplinas que estão sendo incluídas nos acordos denominados de “nova geração” no cenário mundial –inclusive praticados pelos parceiros regionais da Aliança do Pacífico que já saíram do óvulo latino-americano para se relacionarem fortemente com os EUA, Europa e o leste asiático.
O leste sul-americano, ao contrário, fechou-se em torno de um processo desgastado, inclusive em detrimento da integração continental preconizada no Tratado de Montevidéu 1980, que criou a Aladi. Nesse quarto de século de existência do Mercosul, os países membros negligenciaram o papel relevante daquele organismo no processo de integração latino-americano e cujo suporte operacional está assegurado pelo Acordo de Complementação Econômica Nr.18 daquele organismo.
Competitividade – Para o Brasil, a questão básica da participação em novos acordos de livre comércio com áreas mais avançadas reside na obrigatoriedade de reduzir a baixa capacidade competitiva dos produtos industrializados. Desse modo, é forçoso reconhecer a existência de uma espécie de tabula rasa, arguindo a necessidade de haver maior liberdade para o país contrair acordos bilaterais com o mundo desenvolvido. A OCDE acaba de divulgar o alarmante dado de que o país situa-se no 71º lugar no índice mundial de competitividade.
No momento, as prioridades brasileiras estão concentradas nas negociações do Mercosul com a União Europeia e, bilateralmente, na ampliação do modesto ACE 53 com o México. Os espaços mais realistas de negociação com países ou regiões mais desenvolvidas devem concentrar entendimentos nas disciplinas efetivamente protecionistas do comércio internacional: barreiras técnicas, ecológicas e sanitárias, licenças não automáticas de importação, taxas cambiais múltiplas e práticas de subsídios, entre várias outras.
Os acordos setoriais de convergência regulatória que o Brasil vem desenvolvendo com os Estados Unidos constituem belo modelo que pode ser perfeitamente desenvolvido com qualquer outro país, porque estão fora da exigência da Resolução 32/00. Uma nova onda de pragmatismo reclama ser urgentemente implantada no Mercosul em busca de uma realidade tanto tempo ofuscada por ficcionistas de plantão.