'Seu Nato'
Meu avô tinha suas amizades estranhas e verdadeiras
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Ouço o tempo todo:
“Diz-me com quem andas e lhe direis quem és.”
“Foram as amizades que influenciaram.”
“Quem anda com porcos farelo come.”
Confesso que até concordo em grande parte, inclusive meu terapeuta me incentiva a concordar com isso, no sentido de que não é o outro que me influencia a fazer escolhas erradas, elas são minhas, mas eu escolho amizades e relacionamentos dentro do que me parece natural e normal, portanto posso me permitir comportamentos inadequados dependendo das minhas amizades, já que passo a entender que é normal, se eu conviver com frequência.
E hoje tenho cuidado com minhas amizades.
Mas, confesso também que eduquei meus filhos dizendo, não me apareça em casa dizendo, foram as amizades, durante sua vida você vai conviver com viciados, prostitutas, assassinos, chefe de boca, religiosos e você vai fazer uma escolha, não responsabilize suas amizades por suas escolhas.
Hoje penso eu que eu não estava exatamente errada, não estou querendo dizer, pois ainda penso nas minhas escolhas e nas dos meus filhos, mas entendo que nem sempre isso é regra e que sim, o que aceitamos passa a fazer parte da vida.
Mas, não posso deixar de pensar no meu avô e o seu Nato.
Meus avós paternos não falavam do passado, seu Nato, não sei o nome de batismo era um amigo de infância, alguém praticamente da família.
Meu avô um homem honestíssimo, seu Nato um assassino de aluguel.
Meu avô tinha sempre um cômodo construindo no quintal, havia apenas uma cama e um fogão, para o seu Nato.
Ele, sumia por meses, seis, sete, um ano e aparecia do nada, ia para aquele cômodo, durante o dia convivia com cautela com a família, nunca criou um problema, nem uma mínima discussão, passava horas pescando com meu avô, passava ali seis, sete, oito meses, talvez um ano, não tinha tempo certo.
Minha avó cozinhava para todos, sabia quem era seu Nato, ele entrava na cozinha pegava seu almoço e sentava lá fora, as vezes sozinho, as vezes com meu avô, dependia do trabalho na roça.
E de repente, em uma manhã ele sumia, saíra para matar alguém, sem aviso prévio, sem qualquer sinal, apenas desaparecia na calada da noite, por tempo indeterminado, e assim também retornava, os dias se passavam sem nenhuma notícia, um dia, meses depois meu avô acordava e seu Nato saia do cômodo, como se estivesse estado ali durante todos os meses.
Hoje, entendo que ele nunca contou ao meu avô sobre as pessoas que ele assassinara, meu avô nunca perguntou, me pergunto se havia um trato entre eles, mas eu nunca soube, anos após a morte dos dois ainda não sabemos nada, apenas o básico.
Os dois morreram tranquilos, morte morrida como dizem, seu Nato aos 80, meu avô aos 75, mas seu Nato era alguns anos mais velho, não sei quanto e morreu em uma dessas sumidas, saiu para dar fim na vida de alguém, e não voltou, faleceu deitado em sua cama, em algum lugar enquanto dormia tranquilamente.
E penso eu que foi assim que aprendi que amizade tem que ser das duas partes, foi com eles que aprendi o que é ser amigo, e principalmente aprendi que devo viver dentro da minha índole, mas confesso não tenho a maturidade do meu avô, e provavelmente não terei, eles cresceram juntos, amigos desde a primeira infância e embora quando adulto tenham tomado rumos completamente diferentes a amizade se manteve, eu teria rompido com a amizade, no entanto olhar para a vida dos dois me ensinou que muitas das vezes o que nos causa conflito é exigir que o outro seja como eu, pense e viva como eu.
…………………….
Mércia Souza, mãe, avó, artesã crocheteira e escritora, descobriu sua paixão pela arte ainda na infância, possui três livros publicados, dois romances e um de crônicas e participação em várias antologias. Fundadora do projeto “Mulheres com voz” sonha com um mundo de igualdade. Atualmente reside em Cachoeiro de Itapemirim-ES.
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