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A última página

Miguel, o romance e a certeza que dor de mulher não é ficção

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Autor/Imagem:
Ana Pujol - Foto Produção Irene Araújo

Miguel estava na varanda de sua casa de campo, cercado pela tranquilidade da natureza. O sol se punha, e ele segurava um livro que prometia um suspense envolvente. O autor era desconhecido, mas estava junto a uma coletânea de contos de Julio Cortázar, que despertou logo seu interesse. Ele acendeu seu cachimbo e uma doce fragrância de maçã começou a exalar. Abriu o livro.de forma aleatória. O título do conto chamava-se “A Voz Silenciada”, e logo ele se viu imerso na história de Marília, uma mulher marcada por um passado sombrio.

À medida que ele avançava nas páginas, a dor de Marília se tornava palpável. Desde a infância, ela enfrentou abusos e solidão, cada linha revelando as feridas que nunca cicatrizaram. Miguel sentia a conexão com a protagonista, mas também uma inquietação crescente. Ele era apenas um leitor, mas as emoções dela pareciam ressoar dentro dele.

Marília decidiu confrontar seus demônios em um momento de desespero.

Ela acabara de sofrer um estupro e encontrava-se agachada no box do banheiro deixando a água quente escorrer sobre sua pele pálida. Enquanto chorava, num som mudo, esfregava o corpo com sofreguidão. Os hematomas eram visíveis e uma réstia de sangue descia por suas pernas. Não lhe passava pela cabeça ir a uma delegacia e enfrentar um exame de corpo delito, o seu algoz era alguém conhecido.

Colocou um pijama, tomou um chá quente e procurou dormir. Estremecia de dores e o horror ainda pairava nos seus lábios mordidos.

O dia amanheceu nublado e uma fina chuva tamborilava na janela do apartamento. Não saiu da cama, um torpor dominava todo o seu corpo.

Só a tarde conseguiu se levantar e trocar de roupa. Pensamentos confundiam-se com lágrimas. Mas não deixou de ir ao escritório de seu pai e pegar a arma dentro do cofre.

Ela estava sozinha, seus pais tinham ido viajar e ainda ficou algum tempo sentada na sala observando a arma sobre a mesa. Percebeu que ainda sangrava e trocou de roupa. Pegou sua bolsa e desceu para a garagem. Quando entrou no carro sentiu uma leve tontura, ainda não tinha se alimentado, nem tinha vontade.

Dirigiu por muito tempo como se não soubesse para onde estava indo, mas seu destino era certo. Largou o veículo na beira de uma estrada, não levando consigo a bolsa ou as chaves do automóvel.

Começou uma caminhada lenta e seu coração estava em disparada, não havia mais lágrimas. Em uma corrida frenética pelos campos, enfrentando o mato já crescido, desacelerou à medida que seu corpo doía. Ali, onde havia vivido tantos momentos difíceis, ela pegou apenas a arma que levava consigo e se dirigiu ao lugar que simbolizava toda a dor que havia sofrido.

Miguel sentiu que o clímax da história se aproximava: Marília finalmente se confrontou com a figura masculina que representava sua opressão. Ela ergueu a arma com determinação – não apenas pela vingança, mas pela necessidade de recuperar sua voz perdida. E então, Miguel leu a frase que o deixou em choque: “E então ela disparou.”

Nesse momento, algo inexplicável aconteceu. O eco do disparo ressoou não apenas nas páginas do livro, mas na própria realidade de Miguel. Ele se virou abruptamente e viu Marília diante dele, sua expressão determinada e os olhos brilhando com uma mistura de dor e raiva.

“Você leu minha história”, não é? ela disse com firmeza. “Agora você entende.”

Antes que Miguel pudesse reagir ou protestar, o brilho metálico da arma surgiu das mãos de Marília. Ele sentiu o peso de sua culpa e do sofrimento dela transbordar para sua vida. A linha tênue entre leitor e personagem se desfazia.

No instante seguinte, ela puxou o gatilho. Mas não foi apenas uma bala que saiu da arma; era todo o sofrimento acumulado de anos sendo liberado em um único disparo. Miguel caiu para trás enquanto a realidade se desvanecia ao seu redor.

O impacto não foi físico; foi emocional e psicológico. Ele percebeu que não era apenas um espectador da dor alheia; ele era parte do sistema opressor que havia silenciado tantas vozes.

Naquela varanda tranquila, Miguel compreendeu que o sofrimento de Marília não era apenas ficção; era um grito por justiça agora reverberando diretamente em sua vida. E assim, com o eco do disparo ainda ressoando em seus ouvidos, ele se despediu não como um herói, mas como um homem consumido pela culpa e pelo entendimento tardio.

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