Eleito futuro presidente da Argentina, o ultraliberal Javier Milei ascendeu como um fenômeno na política do país vizinho. Com ideias radicais sobre como gerir o país nos próximos anos, ele defende, entre outras coisas, dolarizar a economia, afastar seu governo do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, a quem chamou de corrupto, e retirar a Argentina do BRICS, após o país iniciar seu processo de adesão ao grupo em outubro.
Especialistas em geopolítica do Continente explicam o que levou à ascensão de Milei e como a vitória do ultraliberal pode impactar nas relações com o Brasil e o BRICS e no projeto de fortalecimento regional do governo brasileiro.
Ximena Simpson, doutora em ciência política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisadora da Escola de Política e Governo da Universidade Nacional de San Martín, da Argentina, e coordenadora do Observatório de Política e Economia Brasil-Argentina (Obra), destaca que a vitória de Milei se explica, em grande parte, pela situação econômica da Argentina.
Ela cita a alta inflacionária do peso argentino, que já chega a 150%, e o índice de pobreza no país, que afeta 50% da população. “O que está em crise não é só a economia, mas a política tradicional. Há também a desesperança da população de ver nas opções tradicionais uma possível mudança real na situação econômica de vida”, explica Ximena.
Segundo ela, embora a eleição de Milei venha sendo comparada à do ex-presidente Jair Bolsonaro, em 2018, há aspectos bastante diferentes entre os dois casos.
“A gente pode pensar que são dois exemplos da extrema-direita, mas Bolsonaro não é um outsider como Milei, ele tinha uma estrutura por trás que o Milei não tem. Então, o Milei representa um discurso muito mais rupturista do que Bolsonaro.”
A professora destaca que Milei terá um desafio maior, principalmente no que diz respeito à governabilidade. Isso porque ele não tem o apoio de governadores de províncias ou de prefeitos, nem tem maioria na Câmara ou no Senado.
“Ele vai ganhar governabilidade se aliando ao PRO [coalizão do ex-presidente Mauricio Macri], mas veremos como é que ele vai jogar com essa nova coalizão, que vai ter dissidências, porque muitos mileistas não concordam com essa coalizão (que foi eleitoral, firmada no último momento). Mas Milei vai precisar dela, senão ele não vai conseguir governar.”
Após a vitória de Milei ser anunciada, o presidente Lula publicou uma mensagem nas redes sociais parabenizando o novo governo argentino. Porém, ele não citou nominalmente Milei.
Questionada se isso poderia ser um indício de esfriamento de relações, Ximena afirma considerar o oposto.
“Pelo contrário, acho que a postura do Lula foi de aproximação, não de afastamento. Eu trataria de não colocar tanta ênfase na questão de ele não ter citado o nome do Milei. Acho que o tuíte de Lula foi muito diplomático e abriu uma porta para uma conversa com a Argentina, depois de Milei ter sido tão enfático em dizer que não iria nem conversar com Lula. Acho que Lula está dando um passo à frente, sabendo da importância da Argentina para o Brasil.”
Ela ressalta que a vitória de Milei é uma má notícia para o projeto regional do governo brasileiro, principalmente no que diz respeito ao Mercosul, mas diz que a diplomacia brasileira, ciente disso, está dando um passo à frente.
“Se a Argentina vai conseguir ficar sem o Brasil, é complicado pensar, sendo o Brasil o principal sócio comercial do país. Acho que quem vai ter um papel relevante nesse contexto será o empresariado. Porque uma das questões que o Milei falou foi que ele não vai se opor à relação comercial bilateral Brasil-Argentina, mas que isso não será uma preocupação do Estado, e que quem vai ter que manejar essa relação comercial serão os empresários.”
Ela acrescenta, no entanto, que essa é uma proposta um pouco fora da realidade, pois “indivíduos não implementam o sistema de regulação internacional, mas sim o Estado”.
A especialista afirma que, pelo menos em médio prazo, não há margem política para que Milei consiga implementar as medidas radicais que propôs, como a retirada da Argentina do BRICS, o fechamento do Banco Central ou a dolarização da economia. Isso porque a coalizão PRO, tão essencial para a governabilidade de Milei, já se posicionou contra.
“Ele pode chegar a ter essa margem se conseguir o apoio contundente do PRO. Se ele pode chegar a conseguir alguma coisa tão radical, eu acho difícil. Porque o PRO já se mostrou contrário ao fechamento do Banco Central. Eu acho complicado, não acho impossível, mas difícil que ele avance nessas políticas tão radicais, pelo menos no médio prazo.”
Ximena acrescenta ainda que a implementação de tais medidas vai depender de como se dará a reconfiguração política do país e dos resultados a serem apresentados na economia pelo governo Milei.
Já Lucho Karamaneff, doutor em ciência política da Universidade Nacional de San Martín, aborda o papel do eleitorado jovem na eleição de Milei.
Ele destaca que há setores historicamente peronistas dentro do eleitorado jovem que não apoiaram Milei. Porém, fora dessa esfera, aqueles que apoiaram tiveram “um papel muito importante na militância, com a divulgação e difusão das ideias de Milei, sobretudo nas redes sociais”.
“Outro fator-chave é que esses jovens passaram pelo menos a metade, em alguns casos mais da metade, de sua vida em crise econômica. A Argentina não cresce desde 2011. Além disso, há um processo inflacionário que se acentuou no último ano, com mais de 150% de inflação.”
Ele afirma que os jovens foram um dos setores mais afetados pela crise, assim como foram durante a pandemia.
“Esse grupo jovem ficou recluso durante mais de um ano. A Argentina teve uma quarentena extremamente rigorosa, que impediu os jovens de socializar de maneira presencial e se vincular com seus amigos, no colégio, na escola, numa etapa muito importante do desenvolvimento da vida. E isso me parece que também influenciou justamente nesta busca de liberdade da qual fala Milei.”
Karamaneff acrescenta que os jovens que apoiaram Milei não temem uma possível ruptura democrática, pois consideram a democracia um sistema já estabelecido no país.
“São jovens que viveram sempre em uma democracia, e o medo que havia em torno do Milei sobre o posicionamento autoritário e uma ruptura democrática não chegou a esse setor, porque entendem que não há, efetivamente, um risco.”
Assim como Ximena, ele afirma que a implementação das propostas radicais de Milei não devem se dar em curto ou médio prazo, já que dependem da reconfiguração política e do apoio de governadores.
“Estamos presenciando na Argentina uma reconfiguração do sistema político, com um realinhamento no Congresso, onde os governadores das províncias vão ter um papel-chave. A margem [para implementar as propostas de Milei] parece que, em parte, vai depender de qual agenda que finalmente se propõe, que já está começando a mostrar hoje e que vai continuar se mostrando nas próximas semanas, que serão muito conturbadas.”
Ele ressalta que o papel da diplomacia será muito importante nesse momento de reconfiguração política, “especialmente por parte de embaixadores de países do Mercosul, principalmente do Brasil”.
Nesse contexto, há muito trabalho a ser desenvolvido, já que Milei sinalizou que pretende viajar aos EUA e a Israel, antes de assumir a presidência, mas que não vai ter uma relação com o Brasil.
“Há que ver como se dará isso. E em todo caso, se ele vai poder levar a cabo sua agenda, me parece que hoje, na Argentina, há uma fragmentação, sem uma força política capaz de implementar um projeto de país. Se ele vai conseguir ou não, vai depender de como vai se reconfigurar todo o sistema agora.”