Caminho longo
Militar precisa enterrar ideia de ser tutor do Brasil
Publicado
emNo dia 5 de julho, o ex-vereador do MDB, Sérgio Santana, lembrou um dos desafios centrais da democracia brasileira, senão o mais importante um dos primeiros: a tutela militar. Antes de seguir, informar: Santana foi eleito em 1972, preso em 4 de julho de 1975, no exercício do mandato. Pertencia ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), e estava abrigado no MDB. A fala dele deu-se no decorrer de Sessão Especial da Câmara de Vereadores de Salvador, provocada pela vereadora Maria Marighella, do PT, neta do velho comunista Carlos Marighella, filha de Carlos Marighella, preso também em 1975 e, como sabido, filho do revolucionário morto em 1969 pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury.
A sessão pretendeu lembrar a “Operação Radar”, sangrenta movimentação da ditadura, iniciada em 1973, concluída em 1976, e cujo resultado assustador foi a morte de dez dirigentes do PCB. Na Bahia, com início no dia 4 de julho de 1975, houve a prisão de cerca de trezentas pessoas. A tortura no local denominado Fazendinha, onde estava sendo iniciada a construção de um quartel do Exército, no município de Alagoinhas, de 48 militantes do partido, dirigida diretamente pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra e pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury. Emocionante sessão, a comover todos os participantes, a provocar lágrimas, inclusive de Maria Marighella, levada a visitar o pai quando ainda bebê, no Forte Santo Antônio Além do Carmo.
Dessa operação tenho falado em diversos momentos, em artigos esparsos, ou em meus livros. Tanto da “Operação Radar”, nacional, a cobrir o país de sangue, quando de sua ocorrência na Bahia, denominada pelos órgãos de segurança, não sei se jocosamente, de “Operação Acarajé”. Eu havia recém-saído da prisão. Pouco antes, naqueles meados de 1975, repórter do Jornal da Bahia, havia entrevistado separadamente, pautas diferentes, Sérgio Santana e Roberto Argolo, dois dos presos por aquela ofensiva da repressão no Estado.
Na Fazendinha, ao relento, submetido a torturas, nenhum sanitário à disposição, vivendo o terror de Ustra e Fleury, os prisioneiros políticos, homens e mulheres, passaram dez dias, desaparecidos. Os familiares, desesperados, procurando saber onde encontrá-los.
Ustra fez questão de dizer isso aos presos da Fazendinha: agia em nome de Geisel – nesse caso, não há de se duvidar.
Houve intensa mobilização da sociedade baiana contra a operação. A esmagadora maioria dos presos tinha vida legal. Apenas Paulino Vieira, dirigente nacional do PCB, preso e condenado, com outros treze, era clandestino. O restante, todos, vivendo à luz do sol, na legalidade. Houve manifesto com assinatura de renomados intelectuais, entre os quais Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro. Houve manifestação de várias entidades.
Lembrar da prisão e condenação de dois diretores do Clube de Engenharia – Luís Contreiras e Marco Antônio Rocha Medeiros. De um integrante da FAO, Heitor Casaes e Silva. Intervenção do arcebispo de Salvador e Primaz do Brasil, cardeal dom Avelar Brandão Vilela. A ditadura pagou um preço alto. Não obstante, condenou 14 dos presos, com penas variando entre dois e cinco anos.
Volto a Sérgio Santana. À tutela. Tentadora expressão de Marx e Engels ronda a memória: Um espectro ronda a Europa: o espectro do comunismo. Assim abrem o Manifesto Comunista, um dos maiores sucessos editoriais da história, me desculpem os anticomunistas, é fato. Associação de ideias: um espectro ronda o Brasil: o espectro militar.
Da República aos dias atuais, a tutela militar referida por Sérgio Santana esteve sempre presente, de um jeito ou de outro. No nascimento da República, inegavelmente. Na República Velha, há um sopro de esperança, com o Tenentismo, redundando na epopeia da “Coluna Prestes”, domado nos anos 30, a partir sobretudo do golpe de 1937.
O Exército, porque força central do espectro, se insurge contra um Getúlio Vargas tendente a um projeto democrático de Nação, tanto em 1945, quanto depois de eleito, quando sofre um golpe em agosto de 1954 e o derrota com o suicídio. Juscelino só toma posse porque havia a força e a estrela solitária de Lott, a executar um contragolpe bem sucedido. Vive sob o bombardeio golpista, da mídia e seu espírito conservador, e também sob as tentativas de golpe, como os de Jacareacanga e Aragarças, o Exército contido devido à força dos movimentos populares e da afirmação, tênue fosse, do espírito democrático.
Viria a vitória de Jânio Quadros, num movimento poderoso da direita, com o apoio do Exército. Renúncia e o golpe militar, tentativa de impedir a chegada de Goulart ao Brasil para assumir a presidência da República, barrado pela ousadia, coragem, determinação de Brizola, a movimentar o povo, a Brigada Militar gaúcha e conseguir superar as vacilações do general Machado Lopes, comandante do III Exército.
O golpe de 1964 teve a mão forte do Exército, assessorada pela CIA. O Exército, especialmente a partir do fim da Segunda Guerra, segue religiosamente as orientações dos EUA, não é preciso insistir, mas insisto. Tristes, trágicos 21 anos de arbítrio, terror, ausência completa de democracia. O mais longo domínio direto dos militares, Exército sempre na linha de frente.
A transição, incompleta. Não digo isso como lamento. Constatação. Não houve força política para fazê-la completa. Nem em 1985, quando há o proclamado fim da ditadura. Nem em 1988, quando da nova e promissora Constituição. Houve uma acomodação, um acerto por cima quanto a isso, quanto à tutela.
Da nossa tradição. Conquistas inegáveis, sem dúvida. Não podemos subestimar, até porque conquistas do nosso povo. A acomodação: deixar a tutela intocada. Sempre como uma Espada de Dâmocles, a ser acionada quando necessária, quando as classes dominantes acharem por bem chamar a espada, mesmo possam à frente, lamentar, como diz Marx no 18 Brumário: a burguesia chamada a espada, e depois a espada se volta contra ela. Nem que parcialmente. A burguesia não se importa de correr riscos para tirar a esquerda da sua frente. É histórico, ao menos no Brasil.
Golpe de 2016. Diferente dos demais em nossa história. Próprio de tempos híbridos, de lawfare, envolvimento de instituições destinadas a preservar a democracia, esquivando-se ou optando por estar ao lado do golpe. O Exército, fiador. Espectro garantidor. Lava Jato cumpre papel decisivo, lado a lado com os militares, para de um lado afastar Lula da disputa de 2018, e de outro, no mesmo compasso, eleger Bolsonaro, e não há como dissociar a eleição do atual presidente do envolvimento direto e entusiasmado do Exército e do restante das Forças Armadas brasileiras. O Twitter do general Villas Bôas restou como significativa marca do pensamento e prática golpistas dos militares brasileiros, Lula amaldiçoado, praticamente concitando-se à prisão dele, e conseguindo.
Aqui, acolá, despontam ilusões nos dias atuais. Pensamentos desejosos. Reclama-se profissionalismo das Forças Armadas. Afastamento das atividades políticas. Como se isso fosse possível. Houve um momento a dar alguma sustentação a tais pensamentos. Quando os três comandantes militares, em março deste ano, se demitiram, atritados com o presidente. O presidente foi constrangido a nomear o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira como novo comandante do Exército, em substituição ao general Edson Leal Pujol. Oliveira era notório defensor das medidas científicas de combate à Covid, pensamento distinto do presidente, e havia dado entrevista fazia pouco tempo evidenciando tais posições. Acredita-se não tenha mudado de posição com relação à pandemia.
Viria um teste decisivo, e toda e qualquer ilusão desabariam. O general Eduardo Pazuelo participa em maio de comício do presidente Bolsonaro. A seguir os procedimentos militares, deveria ser punido, irremediavelmente. O Exército, e não é figura de retórica, preferiu bater continência ao presidente da República, e dar sinais de apoio incondicional.
Contorceu-se, e não puniu Pazuelo. Sobre tal decisão, o teor dela, a Nação só poderá saber daqui a um século, a partir de decisão do Exército, no mínimo estranha – sigilo por 100 anos. Desconfia-se, e há razões para tanto: é o efeito Lula, pronto para enfrentar uma eleição, com chances de vitória, em 2022. E os militares, milhares, empregados no governo Bolsonaro talvez tenham sido um forte argumento a garantir a impunidade do ex-ministro da Saúde.
Há um desafio na formulação teórica sobre o governo Bolsonaro. Ditadura, em sentido estrito, não podemos dizer. Vontade do atual presidente, há. Não teve forças para tanto. Talvez pudéssemos arriscar a existência de um regime híbrido, um meio termo entre a ditadura e o governo militar, com impressionante presença direta de oficiais militares na máquina pública, a ditar, condicionar os rumos da política neoliberal em andamento.
De alguma forma, essa natureza híbrida ainda se mostra confortável às classes dominantes locais, historicamente subordinadas e dependentes do capital internacional, incapazes de qualquer iniciativa voltada a um projeto nacional, no máximo pensando em uma até agora improvável terceira via, e procurando atalhos semelhantes ao da crise de 1961, com a proposta do semipresidencialismo. Nem presidencialismo, nem parlamentarismo, um monstrengo qualquer destinado a diminuir o impacto de uma vitória de Lula em 2022, cortar o poder de iniciativa presidencial.
Não, não creio em bruxas. Pero que las hay, las hay. Vamos combinar uma coisa? Bolsonaro não tira a ideia de golpe da cabeça. Por inúmeras vezes, faz propaganda, anuncia. Joga bodes na sala, o último deles, voto impresso. Prepara-se para não aceitar a derrota. Não sei se a correlação de forças o favorecerá. Talvez até lá esteja tão desgastado, tão, tão a ponto de não ter forças para fazer andar um golpe, com base em suas milícias de variada natureza. Mas, ele não nega a intenção, e seguramente trabalha para isso. Claro, há também a conjuntura internacional a desfavorecê-lo, pero a visita de William Burns, diretor da CIA, ao Brasil nos últimos dias causa calafrios. Os EUA são o que são com republicanos ou democratas. De Lula, como se sabe, não gostam. É possível subestimar essa permanente ameaça de golpe?
A tutela, presente. Às forças de esquerda, a todos os democratas, resta a mobilização popular, a mais ampla. Unidade das forças democráticas e de esquerda. Como perspectiva, a luta democrática pretende eliminar a tutela. Não pode perder isso de vista. Forças Armadas deveriam tão somente dedicar-se a serem força dissuasória, como me dizia Waldir Pires, ex-ministro da Defesa, nunca de ataque contra qualquer país vizinho. E muito menos deveriam ser instrumento de golpes, como têm sido efetivamente. Não podem, os militares, serem agentes da Guerra Fria, como se o mundo ainda vivesse sob ela. Não podem embarcar nas ondas contra o avanço chinês, cujo desenvolvimento econômico e tecnológico é inexorável.
Essa tutela só será afastada com o avanço da democracia. Quando afastada, as Forças Armadas caminharão em seu leito. Deixarão de lado quaisquer aventuras golpistas. E quaisquer funções de polícia, como também têm ocorrido, geralmente resultando em desastres, como as intervenções no Rio de Janeiro. Seus soldados, seus oficiais, terão uma formação democrática, afastados todos os fantasmas da Guerra Fria, e afastada, também, qualquer participação política de seus integrantes. Isso será também um pensamento desejoso, um wishful thinking? Talvez. Melhor dizer, uma perspectiva estratégica.
Voltando a Sérgio Santana, ele dizia acreditar na possibilidade de eliminar essa tutela. Com a afirmação dos direitos do povo brasileiro. Com a afirmação da democracia. E a eleição de 2022 pode ser um bom ponto de partida. Com a eleição de Lula. Outra retomada. E nessa retomada, impossível não abordar esse nó: o fim da tutela armada é parte inseparável de nossa caminhada para a liberdade, para que a Nação decida livremente os seus destinos. Nunca com a espada pairando sobre sua cabeça. Como até hoje. Pode ser uma longa marcha chegar ao fim da tutela. Passo a passo, no entanto, indispensável seja enfrentada. Sob pena de não chegarmos a um quadro democrático, a um Estado de Direito, à democracia de fato.