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‘Militares não farão papel de milicianos de Bolsonaro’

Último ministro da Defesa dos governos do PT, cargo que exerceu quando ainda era dirigente do PCdoB, o ex-deputado Aldo Rebelo tem uma avaliação desassombrada sobre o silêncio dos militares da ativa diante das sucessivas investidas do presidente Jair Bolsonaro contra a democracia. “Quem está com a legalidade dentro das Forças Armadas é quem está calado”, disse Rebelo em entrevista à Agência Pública, garantindo que os militares não farão nada “que viole a Constituição”.

Os militares, diz Aldo, não se sujeitarão, como quer Bolsonaro, “ao papel de milícia de quem quer que seja”. Ele reconhece, no entanto, que o momento é difícil e complicado para os chefes do Exército, Marinha e Aeronáutica, que terão de se conduzir “sempre no fio da navalha entre a obediência hierárquica e a disciplina da submissão ao comando do presidente da República e da Constituição.” E afirma: “Conheço razoavelmente bem essas instituições para dizer que eles sabem qual é o limite”.

Aldo Rebelo não tem dúvidas de que, mesmo com a derrota da emenda do voto impresso e o fiasco do desfile de veículos militares nos momentos em que antecederam a decisão da Câmara, o presidente vai continuar “esticando a corda” para tentar obter dividendo políticos das Forças Armadas que, segundo ele  afirma, estão arcando com o desgaste imposto pelo desprestígio do governo Bolsonaro. Para Rebelo, o fantasma do “vai ter golpe, não vai ter golpe”, que preocupa parte da esquerda, é um “ente” permanente, mas não representa risco porque não há no cenário político brasileiro nenhuma das variantes que resultaram no golpe de 1964.

“Essa instabilidade é uma prova de que a democracia está funcionando e acolhendo as disputas, os desequilíbrios e procurando resolvê-los, senão a gente teria a paz de cemitério”, diz ele, alertando que “solavancos e sacolejos” terão continuidade em função do estilo de Bolsonaro e da crise de seu governo: “O problema é que o Bolsonaro vai lutar pela sobrevivência. É um governo carregado de fracassos”, pontua.

Nesta entrevista, Rebelo diz que o ministro Braga Netto foi nomeado para fazer o que seu sucessor na Defesa não quis, afirma que é necessário se preocupar com a “promessa de tumulto e baderna” feita pelo presidente, mas não acredita que o bolsonarismo tenha capacidade de articular um conflito que viole a Constituição. “São forças marginais, um lumpesinato da política e da área de segurança”, afirma.

Pré-candidato à presidência pelo Solidariedade, ao qual se filiou depois de deixar o PCdoB e passar pelo PSB, diz que foi “convocado” por  entidades sindicais dos trabalhadores, agricultores e por militares da reserva para disputar a eleição do ano que vem. Sua plataforma, resumida num livro recentemente lançado, o Quinto Movimento, é uma proposta de retomada do desenvolvimento em cima da “construção inacabada” do país que, na sua opinião, vem a ser o complemento de ciclos que vão do descobrimento ao atual estágio republicano. Rebelo foi também presidente da Câmara dos Deputados, ministro do Esporte, de Relações Institucionais da Presidência e de Ciência e Tecnologia.

Veja trechos da entrevista:

Mesmo com a pressão de Bolsonaro, esse era o momento de levar ao plenário da Câmara a decisão sobre voto impresso?

Qualquer preocupação com a urna eletrônica é correta. Tem suas razões para isso, como ficou demonstrado no caso Proconsult, na eleição de Leonel Brizola [em 1982, ainda na ditadura], onde a fraude se deu na apuração do voto eletrônico. O Brizola e outros tinham essa preocupação. O problema é que essa preocupação converteu-se agora em uma ameaça à democracia por parte de setores do governo e do próprio presidente da República. Desvirtuou-se completamente o debate, dando a entender que se aceitasse essa imposição seria uma concessão à chantagem e à ameaça. Os autores dessa pressão devem ser considerados os principais responsáveis pela própria derrota que sofreram. Acho que dentro das circunstâncias a Câmara agiu corretamente.

Como o senhor avalia o papel dos militares nesse contexto?

As Forças Armadas são as melhores instituições do Brasil, as mais confiáveis, as mais patrióticas e as mais profissionais. Mas agora estão sendo submetidas a um processo de manipulação inaceitável por parte do governo e do presidente da República. Ele nunca teve apreço pelas Forças Armadas. Eu o conheço. Se tivesse não teria se comportado de tal forma que viesse até a ser rejeitado por elas. Sabedor do prestígio, do apreço, da boa imagem das Forças Armadas diante da população, Bolsonaro tenta transferir esse prestígio para sua liderança. Lamentavelmente, além de não conseguir, ele transfere desprestígio de sua liderança e de seu governo para as Forças Armadas. É isso que está acontecendo.

Isso afeta a imagem da Força?

As pesquisas mostram que a imagem das Forças sofre um desgaste diante da população porque estão sendo associadas à imagem dos erros, das falhas e do fracasso do governo. Essa é a questão.

Comandantes e forças da ativa têm como desviar das ordens absurdas de Bolsonaro?

Podem. E isso já aconteceu recentemente. Eles pagaram um preço por isso quando da destituição dos três comandantes (Exército, Marinha e Aeronáutica) e do ministro da Defesa (ex-ministro, general Fernando Azevedo e Silva), provavelmente porque teriam se negado a ultrapassar os limites da Constituição diante dos apelos do presidente da República. As Forças Armadas têm uma dupla lealdade: aos chefes e ao comandante supremo, que é o presidente da República, mas ambos estão subordinados a uma instância superior, que é a Constituição. Quando o presidente insinua ou sugere que se viole a regra maior, certamente ele terá muita dificuldade para contar com a lealdade das Forças Armadas.

Bolsonaro insiste nas ordens absurdas, como no caso da “tanquiata” para entregar um convite nos momentos que antecederam a votação da emenda do voto impresso. Qual é o limite?

Sei que as Forças Armadas vão ajudar em tudo o que o presidente precisar, mas não farão nada que viole a Constituição. Quando ele tentou romper esse limite teve de destituir os três comandantes porque eles não aceitaram ultrapassar essa linha, que para eles é muito clara.

O desfile militar ressuscitou os fantasmas do golpe. Até que ponto há ameaça às instituições?

Fantasmas são para sempre. Agora, risco para a democracia no Brasil nós não temos. Se você examinar rigorosamente, despojado dos medos e da presença dos fantasmas, a gente vê no Brasil uma situação aparentemente paradoxal. É um país ainda muito desigual, desequilibrado, com instabilidade econômica, social, cultural, regional, que nós temos de acompanhar. Qual é a questão? É que essa instabilidade é uma prova de que a democracia está funcionando e acolhendo essas disputas, desequilíbrios e procurando resolvê-los, senão a gente teria a paz de cemitério. Se há instabilidade é porque a democracia está sendo posta à prova e está funcionando. Então nós vamos ter solavancos, esses sacolejos e esses desequilíbrios próprios de uma democracia muito desigual.

Mas não são ao mesmo tempo ingredientes de aventuras autoritárias?

Usando o paralelo, o que foi 64? Havia a Guerra Fria, a maior potência do mundo (Estados Unidos) estava apoiando um golpe de Estado, inclusive com força militar se fosse o caso; o mundo empresarial apoiando e arrecadando fundos para o mensalão do golpe; havia um mundo político com os  governadores mais importantes apoiando (SP, RS, MG); tinha a CNBB – não o padre da paróquia – com nota pedindo o golpe e depois festejando o golpe com outra nota quando ele foi dado; tinha a mídia mais respeitável e grandes editorialistas, os mais qualificados, como o Cony (Heitor), Dines (Alberto), Antônio Callado escrevendo editorial pedindo o golpe; a classe média majoritariamente, parte do movimento sindical, um setor do movimento estudantil apoiavam. Você tem isso hoje? Não há sequer um líder. Tem à frente uma pessoa que não é liderança importante, o que torna (um golpe), muito improvável. Os militares não querem isso, a não ser os que são “viúvas” do Moreira César (coronel golpista, que serviu a Floriano Peixoto e ficou famoso por conduzir a primeira e fracassada campanha contra Canudos).

O que é relevante observar no comportamento dos militares?

Tem que se considerar as Forças Armadas da ativa. Quem é da reserva, mesmo o ministro da Defesa, está num cargo político. As forças da ativa não vão se prestar ao papel de se tornar milícia de quem quer que seja. É claro que vão se conduzir sempre no fio da navalha entre a obediência hierárquica e a disciplina da submissão ao comando do presidente da República e ao comando da Constituição, que às vezes é uma coisa muito subjetiva. Os militares vão sempre se conduzir com cuidado, mas também não podem ser autores nem protagonistas de um quadro de insubordinação.

Como assim?

Se um comandante pode se insubordinar contra o presidente da República, por que não vai permitir que um escalão abaixo dele também se insubordine contra ele? Tem, então, de se submeter ao comando do presidente e da Constituição. Numa situação como essa, onde o Bolsonaro tenta esticar a corda para obter dividendos políticos e eleitorais das Forças Armadas, eles vão enfrentar as dificuldades de se conduzir. É um momento difícil, complicado. Mas conheço razoavelmente essas instituições para dizer que eles sabem qual é o limite.

Devolver o Ministério da Defesa ao comando de uma autoridade civil pode quebrar essa interferência?

Não creio que esse seja o principal problema. Imagine que é possível que em torno do presidente da República existam civis capazes de fazer coisas piores do que o que está fazendo o ministro da Defesa. Não é limitar. É claro que a vocação do Ministério da Defesa é para o poder civil, que foi o objetivo de sua criação. O problema central é afirmar um princípio que foi solapado, o de que (as Forças Armadas) são instituições de Estado e não da vida política e partidária. Isso por uma razão muito simples e didática: a sociedade atribui às Forças Armadas responsabilidades e poderes excepcionais. É a instituição que detém o monopólio da força e da violência, que tem sob sua guarda as armas, como tanques, canhões, aviões e navios de guerra, os quartéis para treinamento e adestramento. Tudo isso a sociedade paga para ela se meter em política, para se transformar num partido político? Não, isso é inaceitável e ninguém vai aceitar uma coisa dessas.

Como o senhor avalia o papel do atual ministro da Defesa, Braga Netto?

Ele foi nomeado para fazer o que seu antecessor provavelmente tenha se negado a fazer. Isso, ao contrário de ajudar o presidente, tem gerado insatisfações porque as pessoas em geral não sabem ver como essas instituições se manifestam. O silêncio também é uma forma de expressão. Quem está com a legalidade dentro das Forças Armadas é quem está calado e também não pode contestar o presidente da República. A pior coisa que pode acontecer é o presidente pedir a um subordinado coisas que ele não pode fazer ou que o subordinado por alguma razão contesta o comando ou a ordem de um superior. Isso viraria uma coisa sem conserto. Os antecessores devem ter posto um limite no que podiam fazer em relação ao que queria o presidente e devem por isso ter sido substituídos pelo atual ministro, chamado para fazer provavelmente o que outro não quis fazer.

A nomeação de oficiais da ativa para cargos no governo não agrava a confusão entre governo e militares?

Militares da ativa sempre foram para o governo sem qualquer problema. A questão não é ser da reserva ou da ativa. Quando ministro do Esporte nomeei o general Fernando Azevedo e Silva (ex-ministro da Defesa de Bolsonaro) como presidente da autoridade pública olímpica. Ninguém percebia que era um militar. O problema é quando você leva um militar da reserva ou da ativa para cumprir uma função civil no governo, como foi o caso do Eduardo Pazuello (ex-ministro da Saúde). É por essa razão que o Congresso tomou a iniciativa de limitar essas nomeações através de uma emenda constitucional que discipline essas coisas. Há muitas funções que são militares, como cargos de natureza técnica (assuntos de defesa, pesquisa nuclear, pesquisa espacial) que devem continuar com a possibilidade de serem ocupados por militares da ativa. Os cargos de natureza política é que devem ficar afastados dos militares, evitando possibilidade de uso político.

Que regras poderiam ser criadas para evitar a politização nos quartéis?

Hoje o indivíduo se licencia para concorrer a uma eleição e, se perder, volta para a tropa como líder político porque se converteu num líder político. O mais importante é que dispute a eleição se desligando da função militar e não volte mais para a corporação. Deve-se também exigir uma quarentena: quer disputar? Então tem de se desligar dois anos antes, senão ele vai iniciar uma campanha ainda usando a farda. O que é que o Pazuello foi fazer naquele comício do Rio de janeiro? Provavelmente uma pré-campanha, porque pretende disputar em 2022. Se quiser disputar, se afasta com dois anos de antecedência e depois não volta, para não contaminar a tropa. Essa medida deve alcançar outras corporações, como o Itamaraty, forças de segurança e demais carreiras de estado. Não pode contemplar apenas as Forças Armadas.

A decisão da Câmara enterrando a emenda do voto impresso pode colocar freio no ímpeto de Bolsonaro?

O problema é que o Bolsonaro vai lutar pela sobrevivência. É um governo carregado de problemas, fracassos, uma pandemia com mortes muito acima do que era previsto pelos conselheiros dele, que disseram que iam morrer duas mil pessoas. Com uma mortandade chegando perto de 600 mil pessoas, desemprego, famílias procurando lenha para queimar porque não pode comprar um botijão de gás, ele então vai procurar substituir essa agenda, que é muito desconfortável pra ele. Vai transformar em uma agenda de entretenimento, como essa do voto eletrônico impresso, que é uma coisa que o povo não sabe direito como funciona. O povo sabe o que é o preço do botijão de gás, do arroz, do feijão, mas ele contorna essa agenda e de certa forma atrai a oposição e a mídia para esse debate.

O insólito não é como se deixaram atrair por essa agenda?

No fundo a mídia tinha a esperança de que Bolsonaro fosse executar a agenda da Faria Lima, que é o mercado, o sistema financeiro. A mídia é uma instituição de mercado. Eles tentaram poupar o presidente de um desgaste maior para que detivesse as energias políticas necessárias para promover as reformas, que era o Santo Graal da mídia. Ele foi poupado por causa da economia e a mídia de certa forma o ajudou ao dar importância para a agenda do entretenimento e do “vai ter golpe, não vai ter golpe”, que qualquer pessoa bem informada sabe que não vai ter. Parte da esquerda assombrada pelos fantasmas, claro, também foi por aí. Mas isso é uma coisa de curto pulo porque aquele que vai buscar lenha porque não tem gás ou está debaixo de uma marquise na Avenida Paulista porque perdeu a casa, não precisa de um repórter dizendo que a economia vai mal.

O Bolsonaro mantém um discurso de ameaça às eleições. O senhor não vê risco? 

Tem de ficar preocupado, sim, porque isso pode ser uma promessa de tumulto, de baderna, bagunça. Eles podem tentar gerar conflito, mas não creio que terão êxito no resultado. Não são forças com capacidade de articular uma solução que viole a Constituição. Não têm esse grau de aderência e de legitimidade. São forças marginais, um lumpesinato da política e dessa área de segurança.

Bolsonaro enfrenta ameaças de impeachment e uma CPI. O senhor acha que ele consegue terminar o mandato?

O desgaste do governo está acontecendo lentamente, mas nada impede que se transforme e se agrave rapidamente. O grave é que o governo Bolsonaro tornou pior o que já era ruim. O sistema de educação, ciência e tecnologia melhorou um pouco na época do Lula e agora voltou a piorar.

Como o senhor avalia o papel do vice-presidente Mourão na política e seu desempenho como presidente do Conselho Nacional da Amazônia?

Temos na região um problema geopolítico muito forte, de interesses pela Amazônia, muito disputado desde o Tratado de Tordesilhas. Você acha que as Guianas estão ali por acaso? O desafio é governar aquela região toda, mas o governo age de forma desastrada, entra numa linha de confronto que isola o país do resto do mundo e cria uma situação muito difícil para nós. Bolsonaro não tem solução para isso. Ele não conhece os problemas. O Mourão tenta, mas não tem os meios e nem o governo apoia as medidas que apresenta. O Bolsonaro isolou Mourão, que está se protegendo de qualquer acusação de deslealdade contra o presidente. Tem tido um comportamento discreto, correto e sinalizado que não está de acordo com o comportamento errático do Palácio do Planalto.

O senhor é candidato à presidência?

Tenho sido convocado de longa data por entidades de trabalhadores, agricultores, militares da reserva, para lançar esse movimento e as teses de uma pré-candidatura. Tenho sido convocado para isso e não vejo nenhum problema em cumprir esse papel. Sou pré-candidato, sim.

O livro que o senhor lançou a alguns dias, Quinto Movimento, é uma plataforma? O que propõe?

São ideias, experiências e convicções firmadas em 50 anos. Quinto Movimento são propostas para a construção inacabada do país, com a retomada do desenvolvimento econômico, científico, tecnológico e social tendo como base de referência quatro movimentos que construíram o Brasil: do marco zero, em 1.500 até o Tratado de Madrid, em 1750; da epopeia da independência até o 7 de setembro de 1922; de 1822 até a abolição da escravatura, em 1888; e, da proclamação da República aos dias atuais. Acho que o país não pode viver numa disputa entre a agenda identitária de setores progressistas e a agenda da guerra cultural dos setores conservadores. Pode pegar as duas agendas e me diga qual é o problema do país que elas resolveram. O país está gastando as energias em torno dessa agenda, alimentada por um grupo que vai aos Estados Unidos atrás do Trump e outro que vai atrás do Biden, mas que não resolvem o problema do desemprego, do desenvolvimento.

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