Entre todas as pessoas ao seu redor, Adalgiza se identificava principalmente com seu tio, o Agnaldo, solteirão convicto cheio de manias. Ela, que era vegetariana, não se importava se ele degustasse algumas asinhas de frango durante suas longas conversas. Agnaldo, por sua vez, gostava de presentear a sobrinha com alguma novidade da culinária isenta de produtos de origem animal. Chocolate, aliás, era algo que deixava a garota extremamente feliz, tanto é que o sorriso ficava ainda mais fácil no seu lindo rosto, onde aqueles óculos lhe conferiam até um certo ar de intelectual.
Apaixonados por matemática, os dois gostavam de inventar problemas envolvendo números. Isso os aproximava ainda mais, se bem que todos ao redor torciam os lábios e logo iam procurar algo mais simples para fazer como, por exemplo, assistir a uma comédia pastelão ou, então, correr os olhos na televisão para observar 22 marmanjos correndo atrás de uma bola, enquanto um terceiro zanzava de um lado para o outro com um apito na boca, sem falar naqueles outros dois que subiam e desciam a lateral do campo tentando espanar as moscas.
A despeito da paixão pela ciência de Pitágoras, Agnaldo passara boa parte da vida envolvido com a enfermagem. Bom de veia, raramente perdia uma, graças à sua capacidade de fazer precisos cálculos do calibre dos vasos sanguíneos. Isso lhe valeu o apelido Agulhinha de Ouro. Dessa forma, se alguém estava com dificuldade de pegar a veia de um paciente, corria para chamar o tio da Adalgiza. Peito estufado, lá ia o herói do hospital, enquanto os colegas quase o ovacionavam, certos que estavam de que ele resolveria mais aquele caso.
Adalgiza, por sua vez, se metera no mundo das letras. Fez mestrado e até doutorado sobre o grande mestre Joaquim Maria Machado de Assis. De tão íntima ficou do mais imortal dos imortais da Academia Brasileira de Letras, que, não raro, se referia a ele como Quinzinho. Talvez nem mesmo a Carolina Augusta tenha chamado o próprio marido dessa maneira. Seja como for, era assim que as coisas costumavam acontecer e, pasmem, aconteciam.
Ignácia, mãe de Adalgiza e irmã de Agnaldo, era uma mulher intuitiva. Excelente na cozinha, conseguia ser ainda melhor quando fazia bolos, especialmente os de cenoura e chocolate. Sabia a receita de cor e salteado, mas nunca a seguia exatamente da mesma maneira. Todavia, por mais esdrúxulo que fosse seu pensamento, eis que a guloseima ficava ainda melhor.
Pois essa história se deu num domingo, talvez de outubro ou novembro, se bem que o mais provável é que tenha sido próximo aos festejos de fim de ano. Na verdade, tais detalhes não fazem a menor diferença, pois as condições de temperatura e pressão eram praticamente as mesmas durante todo o ano naquela cozinha tão ampla, que daria para colocar uma rede de uma parede à outra enquanto o bolo assava dentro daquele forno bem quentinho. Mas, antes disso acontecer, lá estava a Ignácia preparando a massa, enquanto era atentamente observada pelos olhos curiosos da filha e do irmão.
Duas xícaras de farinha de trigo, três ovos, um tanto de fermento… A mulher, com uma colher de pau, mexia tudo. De repente, ela pegou mais um tanto de farinha de trigo e despejou sobre aquela massa, enquanto as mentes matemáticas dos dois curiosos tentavam fazer cálculos para entender aquela manobra culinária. Ignácia, pensativa, tacou mais um ovo e voltou a mexer, certa de que sabia o que estava fazendo. Adalgiza e Agnaldo se olharam espantados, até que a garota, talvez mais impaciente, resolveu questionar a atitude da mãe.
– Pensei que a senhora fosse seguir a receita.
– Eu sigo.
– Mãe, mas aqui diz que são duas xícaras de farinha de trigo. A senhora colocou quase três.
– Adalgiza, bolos são como filhos. Alguns precisam de mais mimos.