Tiros de fuzil, bombas de gás, ameaças. Indígenas da terra Yanomami, um imenso território no coração da Amazônia, passaram o último mês sob ataque de garimpeiros. Desde 10 de maio, quando sete embarcações abriram fogo contra dezenas de indígenas sentados à beira do rio Uraricoera, nenhuma semana se passou sem que novas ameaças fossem registradas. A mais recente foi em 17 de junho, quando garimpeiros afundaram uma canoa com crianças a bordo, que precisaram nadar para se salvar do ataque.
Informações coletadas pela Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (RAISG), dão conta de 43 pontos de garimpo ativos no rio Uraricoera, que nasce perto da fronteira com a Venezuela e chega quase até Boa Vista, capital de Roraima, tendo a aldeia de Palimiú como uma espécie de centro geográfico. A comunidade se transformou no epicentro da guerra com o garimpo ilegal depois que seus habitantes decidiram interceptar a rota fluvial de abastecimento dos acampamentos.
Agora, dados do Amazônia Minada, projeto do InfoAmazonia que monitora requerimentos de mineração em áreas protegidas da Amazônia, revelam uma outra camada desse conflito. A TI Yanomami, um vasto território de quase 10 milhões de hectares divididos entre Amazonas e Roraima, é a terra indígena brasileira com maior área formalmente requisitada para mineração. São cerca de 3,3 milhões de hectares (34,3% da área total da TI) requeridos para extração mineral em 500 pedidos registrados na Agência Nacional de Mineração (ANM) —uma extensão territorial maior do que a Bélgica (3 mi ha) ou que o estado de Alagoas (2,7 mi ha) em disputa com mineradores. Quase um terço de todos esses pedidos registrados buscam por ouro.
Palimiú está cercada por requerimentos e o próprio rio Uraricoera, de onde os garimpeiros atacam, está inteiramente tomado por protocolos de mineração registrados na Agência Nacional de Mineração.
A cobiça sobre o subsolo da TI Yanomami é tanta que a área desse território requerida para mineração supera até mesmo o volume somado de todos os demais pedidos de extração mineral incidentes sobre terras indígenas. Isso quer dizer que não há outra região no país sob disputa tão intensa com esse segmento.
São solicitações que não podem prosperar porque ainda não há no Brasil uma lei que autorize a exploração mineral em terras indígenas. Apesar disso, elas permanecem intocadas, na expectativa de uma mudança legislativa, que cresceu com a chegada de Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto em 2019.
“O presidente já falou que iria lutar pela liberação da mineração nos territórios demarcados. Ele também apoia o garimpo, por isso que os garimpeiros têm avião, combustível, maquinários, armas muito pesadas”, critica Dário Kopenawa Yanomami, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, que representa publicamente a etnia em ações judiciais ou no contato direto com órgãos públicos, por exemplo.
Heranças da ditadura
A intensidade dos ataques neste último mês exige dos Yanomami uma mobilização especial. Sem medidas efetivas das autoridades, os indígenas decidiram monitorar seu território por conta própria, para prevenir novas investidas. “Nosso povo sabe se proteger em uma guerra e agora é isso que estamos fazendo. Sabemos onde o inimigo está”, revela a liderança. No último dia 14, o Ministério da Justiça autorizou o uso da Força Nacional para conter o conflito na região, mas até a conclusão desta reportagem nenhuma ação havia sido tomada.
A experiência desses indígenas na guerra contra o garimpo, entretanto, é longa. Começou nos anos 1970, quando a ditadura militar lançou o primeiro mapeamento mineral da região, o projeto Radam, que em pouco tempo atraiu pelo menos 500 garimpeiros para o território, ainda não reconhecido formalmente pelo país como terra indígena (o que só veio a acontecer em 1992). No auge dessa corrida pelas riquezas do subsolo, a região chegou a ter 40.000 garimpeiros — quase o dobro da população indígena atual. “Isso é um problema antigo, na década de 80, quando eu era criança, quem enfrentava os 40.000 garimpeiros que estavam aqui era o meu pai”, recorda Dário, herdeiro de Davi Kopenawa, xamã e porta-voz desse povo por décadas.
Foi esse mapeamento mineral promovido pela ditadura que despertou a cobiça pelo subsolo amazônico. Mais tarde, em 1986, uma pista de pouso aberta pelo Ministério da Aeronáutica foi o elemento que faltava para o boom de ilegalidades na área —ela fornecia acesso direto a 50 garimpos no interior da floresta, segundo registra o geógrafo Estevão Senra em sua tese de doutorado, defendida em janeiro na Universidade Nacional de Brasília (UnB). Senra é consultor da Hutukara e monitora as áreas abertas pelo garimpo na TI.
Os requerimentos minerários na TI Yanomami ativos na ANM são um testemunho da influência dos generais sobre a floresta: quase 70% dos pedidos dentro do território são anteriores à Constituição de 1988, marco inicial da era democrática recente brasileira.
“O projeto de colonização da Amazônia implementado na ditadura, de instalação de infraestrutura com vistas ao desenvolvimento, foi o que produziu as condições que a gente observa hoje. Antes havia alguns garimpos de diamante no entorno do Monte Roraima, mas foi o Radam que lançou a ideia de que Amazônia era uma província minerária”, observa Senra.
Agora, essa visão está mais viva do que nunca no discurso de Bolsonaro. Uma visita recente do presidente ao Amazonas marcou sua primeira incursão em uma terra indígena brasileira —mas foi interpretada como ato de apoio aos ilegais, embora na ocasião Bolsonaro tenha prometido respeitar a vontade dos indígenas sobre a exploração econômica de seus territórios. Além disso, a recente nomeação do militar da reserva Leandro Silva Peixoto da Costa como coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Yanomami Ye’Kuana da Funai reacende a memória de um passado que os Yanomami não querem esquecer, mas lutam para superar.
“Nossos territórios foram invadidos pela ditadura militar e hoje isso tudo está se repetindo”, lamenta Kopenawa. “A estratégia de Bolsonaro é a mesma de governos passados, é a lógica do pensamento do europeu que chegou, tomou a terra, extraiu minérios. Isso infelizmente continua”, conclui.
Morte e violência
A ação da ditadura trouxe consequências brutais: segundo estimativas do Ministério da Saúde compiladas por Estevão Senra em sua pesquisa, entre 1987 e 1990, 14% da população Yanomami em Roraima morreu por conta de doenças associadas à invasão garimpeira. “Da mesma forma, a destruição do leito dos rios e a sua contaminação por mercúrio, óleo diesel e outros resíduos causaram danos significativos aos ecossistemas locais, impossibilitando os Yanomami de usufruir de numerosos recursos imprescindíveis para o seu sistema produtivo”, acrescenta o geógrafo.
Agora, um relatório publicado pela Hutukara em março deste ano apontou que o rio Uraricoera concentra mais da metade (52%) de toda a área degradada pelo garimpo, identificada por sensoriamento remoto na terra indígena. A devastação da mineração ilegal, que já havia crescido 30% em 2020, segue avançando: já são mais de 2.430 hectares destruídos na reserva pelas mãos de garimpeiros. As crateras produzidas na floresta pela atividade ilegal fez os pesquisadores do Instituto Socioambiental compararem o cenário à imagem de Serra Pelada, maior garimpo a céu aberto no mundo. As lideranças indígenas estimam que há hoje mais de 20.000 garimpeiros ilegais trabalhando em seu território —é quase o tamanho da população Yanomami inteira dentro da TI.
Desde o ano passado, explodiram os casos de malária na área e, embora sejam parte do grupo prioritário para vacinação contra a covid-19, indígenas relatam que suas injeções foram parar nos braços de garimpeiros, com doses compradas a peso de ouro. “É um crime, mas no garimpo ilegal não tem lei. Nós fomos contaminados por garimpeiros e morremos bastante”, lamenta Kopenawa, indicando que ainda há indígenas à espera do imunizante em regiões muito afastadas e de difícil acesso.
Além disso, no ano passado dois Yanomami foram assassinados por garimpeiros na região de Parima e uma adolescente indígena foi sequestrada pelos invasores em Surucucu. Os registros acenderam um alerta na comunidade, recordando o trágico episódio conhecido como massacre de Haximu, ocorrido em 1993, em que garimpeiros exterminaram 16 indígenas, incluindo crianças e idosos. Foi o primeiro caso de genocídio no Brasil reconhecido formalmente pela Justiça.
“A violência envolvendo mineração ilegal sempre aconteceu. O que está diferente hoje são as armas, que têm um potencial de letalidade muito maior: se antes os garimpeiros atiravam com espingardas, hoje eles têm fuzis”, alerta Senra.
Mineração ilegal
O Ministério Público Federal entende que a ANM deveria indeferir imediatamente esses pedidos porque a mineração em terras indígenas é proibida enquanto não houver lei que os autorize. Com esse argumento, o MPF do Amazonas conseguiu uma liminar no ano passado (ainda em vigor) que derrubou 75 pedidos sobrepostos à parte do território Yanomami que fica no estado. Eram 645.000 hectares da parte oeste do território demandados pela mineração.
A Constituição de 1988 determina que terras indígenas só podem ser abertas para a mineração quando uma lei específica sobre o assunto estabelecer as condições em que essa exploração deve acontecer —por exemplo, garantindo os direitos de consulta e veto às etnias atingidas e também a distribuição de royalties, segundo o impacto provocado. Muitas tentativas já foram feitas ao longo do tempo —todas sem sucesso— mas desde que o presidente Jair Bolsonaro tomou posse, em janeiro de 2019, o apelo pela mudança cresceu, acompanhando seu discurso antipreservacionista.
Bolsonaro apresentou seu próprio projeto de legalização da mineração em áreas protegidas. “O PL 191/2020 é super complicado, envolve mineração, hidrelétricas, petróleo, gás, transgênicos. É um pacotão que vai muito além do dispositivo da Constituição e já foi elencado como prioritário pelo governo” explica explica Marcio Santilli, fundador do Instituto Socioambiental que participou dos debates na época da elaboração da carta magna brasileira e avalia a proposta como “a pior já apresentada” na história da democracia brasileira.
Um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) calculou que a mudança pode significar uma devastação na Amazônia do tamanho da Venezuela.
O Planalto também tem como meta a aprovação de um PL mais antigo, de 2007, que dificulta as demarcações de terras indígenas e legaliza o garimpo.
Não à toa, os dois primeiros anos de mandato de Bolsonaro representaram um recorde no volume de pedidos de mineração sobrepostos a terras indígenas. “Na visão do povo Yanomami, a mineração em terras indígenas significa morte e violência. O governo vai acabar com o povo Yanomami”, alerta Kopenawa.
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