Maricota não tem rabo. Tinha um, mas cortaram. Por maldade ou por questões estéticas. Caudectomia, amputação e fim. De toda forma, maldade, pois o rabo era dela; a questão estética, coisa é outro lance.
Também pode ser que tenha sofrido um acidente, vai saber?
O que importa é que a Maricota é, hoje, uma cadelinha sem rabo. Cotó. Deixaram-lhe só uma vértebra, coberta por um chumaço de pelo feito um topete do lado errado.
E, ainda assim, ela abana docemente o rabo que não tem.
Abana o rabo e deve sentir que o rabo não responde, como no sonho em que a gente grita e a voz não sai, aquela dor de cabeça que a gente jura “que está nos matando”, mas não existe.
Então Maricota rebola. Cantar não canta.
Rebola de felicidade, rebola de excitação. E a excitação não deixa de ser uma forma de felicidade.
Pode ser que todo animalzinho amputado rebole ao abanar o rabo (vou prestar mais atenção!) e não se perceba o rebolado porque o rabo já não está lá.
O rabo sempre rouba a cena. O rabo é a janela da alma de animaizinhos tipo Maricota.
Os olhos são só o seu jeito de ser bilíngue e falar com a gente na nossa língua.
Pode parecer estranho, mas também através de nossos olhos -do ponto de vista de uma cachorrinha de alto QI como Maricota-, conseguimos projetar nossos sentimentos.
Mas o idioma, a sintaxe que ela domina, o vocabulário mais complexo é com o rabo que ela nos fala e nos comunica.
É com o rabo que ela diz “Eu te amo” quando saio para jogar o lixo; ou quando eu retornava do trabalho antes da peste.
“Não sei por que você se foi e me deixou sozinha aqui…” (que é outra forma de dizer “te amo”). Seres sensíveis e geniosos feito Maricota são terríveis na manipulação do amor.
Maricota sofre pela perda do rabinho.
Como nas mulheres que usam botox, pintam as raízes embranquecidas dos cabelos e nos homens escondidos atrás de suas carecas e barrigas imensas, há emoções que Maricota não consegue expressar.
Ao levar uma bronca, por exemplo, ela não pode simplesmente enfiar o rabo entre as pernas.
Contrariada, então, ela se senta, o que acaba sendo a forma dela de se proteger e protestar.
Possivelmente cães e cadelas não sentem culpa. Isto é coisa de humanos; privilégio judaico-cristão de milhões que precisam de um deus para poderem se arrepender sem culpa.
A cachorrada sente outra coisa ao tomar o dedo em riste diante do focinho:
– Dedo? Por que não o biscoito de osso que você guarda no armário? -ou ao ouvirem a voz alterada
…
– Não precisa continuar nesse tom; não vamos ter problemas, tá? -mudando as respostas das perguntas retóricas
…
– Você sabe que fui eu, por que é que está perguntando QUEM FOI QUE FEZ ISSO?…e olhando pra mim?
Nos últimos meses ando perdendo o sono.
Esse ar perplexo de Maricota (entendido como culpa, sentimento mais familiar aos humanos), não seria menor se o rabo estivesse lá, inteiro?
O rabinho entre as pernas facilitaria a chantagem, dispensando a humilhação, as orelhas baixas, o olhar na diagonal, o peso do mundo sob o fiofó grudado no chão frio.
Mas o tempo é mesmo ingrato e cruel.
De tanto rebolar de felicidade e de tanto travar o rebolado de perplexidade, Maricota foi perdendo o movimento jovial e as articulações estão ficando enrijecidas; ela, agora, anda meio durinha, de lado, com as patinhas arqueadas.
Está ficando triste, a minha amadinha; uma frágil cachorrinha articulada da ponta do focinho até onde acabam as costelas.
Dali para trás, até o chumaço de pelo do cotoco do rabo, ela funciona em bloco, como esses caras bombados de academia que não são capazes de virar o pescoço sem girar o tronco.
Com o rabo que já não tem, ela só pode ficar de cócoras e “dizer” que está com medo de outro cachorro ou pior, de algum humano. Creio que não.
Acredito no amor incondicional desta pessoinha vinda de outro planeta, pois assim como eu,
Maricota ainda tem fé e confiança no ser humano, mesmo depois de lhe terem tolhido a liberdade de expressão total decepando-lhe o rabo.
Maricota é um ser digno e extraordinária companheira.
Não consigo esconder dela a minha tristeza por não entender direito a sua linguagem.
Sempre pensei que poderia, talvez pelo fato de eu ser um parente mais próximo do macaco, que há tempos também perdeu o rabo. Acho ridículo, mas dizem que eu sou um ser desenvolvido, humano.
Acho mais ridículo ainda quando dizem que bichinhos como a Maricota têm os trejeitos, a personalidade e se parecem com o dono ou a dona. Bobagem.
Veja o caso da minha vizinha -a verdadeira dona da Maricota cotozinha- pode ser tudo, tudo mesmo, menos um ser; e humano, jamais!
Desta forma, passam os dias e vamos sobrevivendo trancados em meio a terrível pandemia.
Maricota e eu formamos um típico casal pós-moderno, um novo arranjo familiar, pós-tudo. Nós nos amamos, trocamos solidariedades e viajamos em nossa imaginação. Mas vivemos em apartamentos separados. Na verdade, Maricota é a dona absoluta da casa.
Não lembro bem do dia em que conheci Maricota.
De certo mesmo, já rebolava sem o rabinho poliglota.
Passeamos pela vida viandantes cúmplices e confiantes, apenas, de que ficaremos juntos até o fim.
Há um fim?