Passagem do tempo
Minhas saudades são das pessoas das quais não me despedi direito
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emTatuagem na alma, a saudade é um sentimento que dia após dia me pega de surpresa. Ela chega sem avisar e enche minha cabeça com dias, semanas, meses e anos que não cessam. Lendo Mia Couto, descobri que só nos livramos dela perdendo um pedaço de nós. É o preço que a gente paga por ter vivido momentos inesquecíveis. Bem disse Mário Quintana que é a saudade que faz as coisas pararem no tempo. Ainda mais profundo foi Charles Baudelaire. Segundo ele, aos olhos da saudade, como o mundo é pequeno. Como não posso esquecer a passagem do tempo, faço como Michel de Montaigne, para quem podemos ter saudades dos bons tempos, mas não devemos fugir do presente.
Eu não fujo, mas tenho vontade de voltar. Não fujo porque tenho mais lembranças do que nostalgia. Apesar dos percalços vividos e do medo constante do perigo, eu era feliz e não sabia. Com gumex no cabelo, perfume Lancaster e camisa banlon, dormia ouvindo os Fevers e acordava só pensando em amar. Não é o meu caso, mas quem tinha bastava parar o carro de frente para o mar ou numa rua escura para namorar. No bordejo noturno, a ideia de frente e de costas era arrumar um broto para amar. A gente fugia, se escondia, corria, mas imaginava uma festa todo dia.
Como está registrado na música dos Fevers, a vida era tão boa para quem sabia sonhar. Ninguém xingava, matava ou morria por causa de política, muito menos por defender ou acusar políticos. Eu e todos de minha época tínhamos consciência de que, na política, a verdade já nasce morta. Aliás, ameaçados pelas balas de canhão, éramos obrigados a isso. Amém e sim senhor faziam parte da ordem do dia de qualquer jovem ou adolescente de décadas passadas. Nos tornamos mudos, surdos, ufanistas e servis. Alguns nasceram assim e assim serão até morrer.
Parece que foi ontem. Por isso, hoje, quando vejo ou ouço moços e velhos pedindo a volta da ditadura, tenho a impressão de que foi em vão a morte de tantos brasileiros que lutaram pela liberdade. Nascidos do mesmo ventre livre, os que, como eu, não negociam a liberdade são diferentes dos que têm medo dela. Embora tenham diariamente a memória avivada pelo pensador Mário Sérgio Cortella, os medrosos e bajuladores do despotismo esquecem que na ditadura não havia hipótese de uma passeata pela democracia. Que bom que, 60 depois, os antidemocratas usam a democracia para se manifestarem a favor da ditadura.
Paciência, perdão e acolhimento à parte, essa é uma das marcas que o tempo não vai apagar. Portanto, no caso específico, a saudade é um paradoxo. Ao mesmo tempo em que ela me remete a um passado de cicatrizes, me permite lembrar das experiências prazerosas já vividas. Uma delas foi o fim do arbítrio e de todos que dele participaram. No fim e ao cabo, descobri meu anjo tendo um tête-à-tête passageiro com o demônio. Me tornei antigo, mas permaneço contemporâneo daqueles que cozinharam o galo na água fria.
Amante inveterado dos bons escritores, vi o tempo passar, mas não deixei que o tempo passasse antes de aprender com eles os vários significados da palavra saudade. Aproveitei o tempo e aprendi com Clarice Lispector que minhas saudades são das pessoas das quais não me despedi direito, das coisas que deixei passar e, principalmente, do que não tive, mas quis muito ter. Também assimilei os bons ensinamentos dos grandes poetas. Com eles descobri que sentir saudade é melhor do que o caminhar vazio. Enfim, hoje eu sei que uma vida sem saudades é uma vida sem momentos memoráveis.
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*Armando Cardoso é presidente do Conselho Editorial de Notibras