Apocalipse
Míssil hipersônico da China deixa americanos tontos
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em“Ouça agora o som que separa para sempre o velho do novo”. Foi assim que a rádio norte-americana NBC introduziu o sinal do primeiro satélite no espaço, em 4 de outubro de 1957, nos Estados Unidos.
Mas a novidade não era um triunfo da ciência norte-americana: o som vinha do Sputnik, da União Soviética, uma peça de hardware do tamanho pouco menos que uma bola de vôlei cujo lançamento surpreendeu o mundo – e os Estados Unidos em especial.
A expressão “momento Sputnik” foi cunhada para marcar a ocasião. Ele exprime o choque com a perda de uma suposta superioridade, o salto tecnológico de um rival que poderia destruir o equilíbrio de poder nuclear.
O então presidente Dwight D. Eisenhower declarou estar “nem um pouco” preocupado com o Sputnik, mas a reação pública e política nos Estados Unidos foi menos otimista. “A ciência russa derrotou a ciência norte-americana”, estampou o jornal “Boston Globe”.
Na semana passada, o presidente do Estado-Maior das Forças Armadas dos Estados Unidos, general Mark Milley, relembrou o “momento Sputnik” ao comentar os testes chineses com um ou mais mísseis hipersônicos que aconteceram no meio deste ano.
“O que vimos foi um evento muito significativo de um teste de um sistema de armas hipersônico. E é muito preocupante”, afirmou Milley. “Não sei se chegar a ser um momento Sputnik, mas acho que está muito perto disso”.
A China diz que não fez nada mais do que lançar um veículo espacial reutilizável. Com base apenas nesses testes, é difícil determinar as intenções chinesas. O país tem investido maciçamente em mísseis e capacidades espaciais nos últimos anos, ao mesmo tempo em que desenvolve forças convencionais e guerra cibernética.
Em termos de segurança nacional, as surpresas e a incapacidade de avaliar uma ameaça são o que mantêm o alto escalão acordado à noite. No passado, no caso do Sputnik, os dois pontos – surpresa e inabilidade de avaliação – foram cumpridos. Já o rápido desenvolvimento da tecnologia hipersônica na China pode ser de outra ordem.
Nos anos que se seguiram ao Sputnik, os EUA rapidamente ultrapassaram a União Soviética em tecnologia de satélite e espacial. A NASA foi criada em 1958 e realizou o primeiro voo de veículo de teste hipersônico no ano seguinte. Em 1960, os EUA tinham três vezes mais satélites orbitando a Terra do que a URSS.
A paridade foi restaurada, apesar de alguns contratempos ao longo do caminho. A primeira resposta dos EUA ao Sputnik explodiu no lançamento; aliás, o teste de um veículo hipersônico em outubro agora também falhou.
Tão pouco se sabe sobre o programa chinês que é quase impossível avaliar se uma lacuna maior se abriu. Autoridades dos serviços de inteligência disseram ao Comitê de Inteligência do Senado em briefings privados que o teste chinês marcou um avanço substancial na capacidade da China de lançar um primeiro ataque estratégico contra os Estados Unidos, de acordo com fontes familiarizadas com as reuniões.
Outros funcionários e especialistas não estão tão preocupados com o teste do míssil e dizem que, embora tenha a intenção de provocar, a tecnologia não dá a Pequim uma vantagem e, portanto, não desestabiliza o jogo.
A tecnologia em si não é nova: EUA, China, Rússia e outros países vêm trabalhando nisso há décadas. A Rússia está desenvolvendo um gama de armas hipersônicas que o presidente Vladimir Putin se gabou de serem “invencíveis”.
O que seria desestabilizador é se uma das potências assumisse uma liderança decisiva em transformar em armamento a tecnologia hipersônica.
Agilidade em baixa altitude
Os mísseis hipersônicos não são tão rápidos quanto os mísseis balísticos (embora, atingindo cinco vezes a velocidade do som, estejam longe de serem lentos). No entanto, viajam em baixas altitudes e são manobráveis. Como podem de mudar de alvo durante o voo, são difíceis de detectar e interceptar. Um relatório de 2017 da organização RAND Corporation observou que mesmo “os defensores com sensores terrestres e espaciais terão apenas alguns minutos para saber que esses mísseis estão chegando”.
Se um míssil balístico intercontinental (ICBM na sigla em inglês) fosse disparado contra um alvo dos EUA, cerca de 25 minutos se passariam entre a detecção e o impacto. Alguns analistas calculam que, se uma arma hipersônica fosse usada, o intervalo seria de apenas 6 minutos.
Para proteger os Estados Unidos continentais de um arsenal hipersônico, seria preciso ter um número inacessível de defesas de alta altitude. E isso pressupõe defesas muito melhores do que as atualmente implantadas.
Além disso, os sistemas antimísseis dos EUA estão focados no Hemisfério Norte, mas um míssil hipersônico altamente manobrável em órbita baixa pode ser direcionado sobre o Polo Sul.
Alguns especialistas apontam que a era dos mísseis hipersônicos é, por enquanto, mais teórica do que real. Ainda há muita engenharia necessária.
Ivan Oelrich, ex-vice-presidente da Federation of American Scientists (Federação de Cientistas Americanos), afirma que “as armas hipersônicas irão adicionar algumas novas capacidades militares, mas não vão revolucionar a guerra”. Mesmo assim, o relatório da RAND de 2017 estimou que haveria ‘no máximo uma década antes que os mísseis hipersônicos se tornassem militarmente significativos”.
Perda de inocência
O momento Sputnik original desencadeou uma boa dose de reflexão nos Estados Unidos.
Os críticos sentiram que os Estados Unidos demoraram a reconhecer e responder à ambição dos soviéticos de serem os primeiros a chegar ao espaço. Tanto Lyndon Johnson quanto John F. Kennedy, então senadores dos Estados Unidos, usaram o momento Sputnik para criticar o despreparo americano.
Johnson advertiu que a União Soviética seria capaz de bombardear os EUA com ogivas nucleares como se fossem crianças jogando pedras de um viaduto.
Da mesma forma, hoje alguns críticos dizem que os EUA têm sido lentos em reconhecer a ameaça. “O Pentágono falhou em articular a necessidade e, em seguida, gerenciar o desenvolvimento de armas hipersônicas”, avaliou Andrew Senesac, da National Defense Industrial Association (Associação Industrial de Defesa Nacional). O Sputnik estimulou os gastos com educação científica: a Lei de Educação de Defesa Nacional foi aprovada em 1958.
Ainda não se sabe se o rápido acúmulo de capacidades chinesas inspirará investimentos semelhantes nos Estados Unidos.
O Sputnik também estimulou um grande investimento em tecnologia de satélite tanto pelos Estados Unidos quanto pela União Soviética. A humanidade se beneficiou de suas aplicações civis (como o GPS e as telecomunicações) mas, até 1990, cerca de quatro em cada cinco satélites no espaço eram militares.
Hoje, a tecnologia hipersônica está sendo desenvolvida na Austrália e na Europa para aplicações comerciais pacíficas, embora grande parte dessa tecnologia pode ter um valor militar.T
Controle de armas e defesa
O momento Sputnik foi importante de duas outras maneiras.
O risco de que o espaço pudesse perturbar o equilíbrio militar acabou por estimular uma era de acordos de controle de armas, já que os mísseis balísticos com armas nucleares tinham o potencial de aniquilar um adversário.
Os satélites se tornaram uma parte importante dos sistemas de alerta precoce que permitiam à humanidade viver com a “destruição mutuamente assegurada”.
Mas o espectro da destruição também gerou pesquisas sobre defesas de mísseis, como por exemplo de como interceptar e destruir mísseis que se aproximam. Esse esforço atingiu seu apogeu com o programa Guerra nas Estrelas, do presidente Ronald Reagan, na década de 1980.
Os avanços da China podem reaquecer a escolha entre explorar maneiras de se defender contra mísseis hipersônicos com armas nucleares ou tentar igualar as capacidades ofensivas chinesas e russas.
James Acton, do Carnegie Endowment for International Peace, disse que os EUA “deveriam se oferecer para negociar novos limites para as defesas antimísseis, com os quais só concordariam se a China e a Rússia oferecessem concessões muito significativas em troca”.
Um grande estudo da RAND Corporation chegou à mesma conclusão. “A exigência inevitável é que os Estados Unidos, Rússia e China concordem com uma política de não proliferação”, escreveram os autores.
Isso poderia potencialmente inaugurar um novo capítulo de dissuasão nuclear, como alguns diriam que o Sputnik fez.
Há uma advertência importante. Na década seguinte ao Sputnik, os Estados Unidos e a União Soviética desenvolveram canais de comunicação para tentar garantir que o conflito não começasse por erro de cálculo.
Hoje, existem poucos canais desse tipo com a China, o que é problemático quando tantas plataformas podem transportar ogivas convencionais ou nucleares.
Dinheiro e conhecimento
Uma semelhança nada surpreendente com o momento Sputnik é como essas ocasiões abrem o apetite para a necessidade de muitos gastos.
O orçamento do Pentágono para pesquisa e desenvolvimento de sistemas hipersônicos aumentará no próximo ano para US$ 3,8 bilhões (cerca de R$ 21 bilhões). Em outubro, o CEO da Raytheon Technologies, Gregory Hayes, disse que os Estados Unidos estavam “pelo menos vários anos atrás” da China no desenvolvimento da tecnologia hipersônica. Fareed Zakharia, em um texto no “Washington Post”, disse que “despertar temores sobre um inimigo enorme e experiente em tecnologia é uma
maneira infalível de garantir novos e vastos orçamentos que podem ser gastos combatendo cada movimento do inimigo, real ou imaginário”.
“Real ou imaginário” é parte do problema quando se trata de armas hipersônicas.
Tomando emprestada uma famosa sequência de frases do ex-secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld: “Há coisas que sabemos que sabemos. Também sabemos que existem conhecidos desconhecidos. Ou seja, sabemos que existem algumas coisas que não sabemos. Mas também existem desconhecidos desconhecidos, aquilo que não sabemos que não sabemos”.
E, como ele disse mais tarde, “são eles que pegam a gente”.