Decúbito dorsal
Mistério do morto em escadaria da igreja mexe com povo de Maranguape
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Maranguape amanheceu alvoroçada. Bem aos pés da escadaria da Igreja Matriz, jazia um corpo estatelado em decúbito dorsal. O problema maior não era apenas o falecido em si, mas o fato de que ninguém na cidade o conhecia. Nem mesmo dona Cleonice, que sabia até o nome dos parentes de quinto grau de qualquer morador.
O delegado Severino, acostumado a prender cabrito fujão e apaziguar briga de compadres, coçava a cabeça sem saber o que fazer. A cidade inteira opinava. Uns diziam que era um viajante, outros apostavam que era um forasteiro com intenções duvidosas. A teoria mais aceita era que se tratava de um alienígena disfarçado, perdido após uma tentativa de abdução malsucedida.
Diante do impasse, alguém sugeriu chamar Xerloque Rolmes, o detetive mais astuto da região (e que, por coincidência, atendia pelo nome de Arimateia e vendia pastel na feira quando não estava investigando). Ele mediu o morto de todos os ângulos, cofiou o bigode e decretou: “O caso é enigmático! Esse cabra não é daqui. Mas, como veio parar aqui? E por que de barriga pra cima? Mistério, mistério…”.
Ninguém soube responder.
Foi então que um estudante, jovem sabido que lia até bula de remédio por passatempo, lembrou-se de uma recomendação sagrada:
“Quando a dúvida for grande, consulte Padre Cícero”.
Com essa luz divina, foi até Juazeiro pedir conselho. O santo homem, após ouvir a história, pensou, pensou e respondeu com a serenidade de quem já viu de tudo:
“Procure o Professor Raimundo Nonato. Somente ele, do alto de sua sapiência, poderá esclarecer esse enigma”. Esse aluno atendia pelo nome de Aldemar Vigário.
Foi justamente no momento da maior da confusão, que o bajulador oficial da cidade, com aquele sorriso exagerado e as mãos gesticulando sem parar, surgiu correndo pela praça. Assim que avistou o professor Raimundo, abriu os braços e disparou, em tom melodramático:
— Quem, quem, quem é o maior gênio desse Brasil, dessa América Latina, desse universo?!
Antes que alguém respondesse, ele mesmo continuou:
— Raimundinho! O nosso professor Raimundo Nonato! O homem de maior cabeça, maior cérebro e maior inteligência de toda a nação nordestina, brasileira e interplanetária! Só ele para elucidar o mistério.
O professor Raimundo, acostumado com os exageros do vigarista mais puxa-saco da história, suspirou, ajeitou os óculos e rebateu:
— Ô, Aldemar, larga de conversa fiada, senão essa tua língua cresce mais que minha testa!
Introspectivos, reuniram-se todos na escolinha do Professor Raimundo. Com a paciência de um monge e a pose de um grande sábio, ele ouviu as mais diferentes teorias e, depois de um longo silêncio, disparou:
— Mas que coisa, hein?! E o salário, ó…
A cidade inteira esperou uma resposta mais científica, mas ele apenas coçou a cabeça e se virou para Seu Boneco:
— Você, que já foi preso várias vezes, tem alguma pista?
— Eu?! Eu não sei de nada, professor! Só sei que… eu quero é dinheiro!
Dona Cacilda, sem paciência, gritou:
— É, e agora? Como a gente vai resolver isso?
Foi então que Rolando Lero levantou o dedo e começou:
— Pois bem, vejamos, raciocinemos! Se o senhor me permite, meu ilustríssimo professor, meu mentor, minha luz… eu tenho uma teoria que pode esclarecer esse evento de forma cabal e irrefutável!
— Fale logo, criatura! — ralhou o professor.
— Elementar, meu caro mestre! O defunto caiu ali porque estava subindo a escada! Ou seja, se ele caiu, é porque estava em pé antes de cair! Se estava em pé, é porque estava vivo! O que nos leva à conclusão inescapável de que… ele morreu porque… bem… morreu!
O professor Raimundo, ladeado por seus inusitados alunos, escutou atentamente o relato. Após ajustar os óculos na ponta do nariz e bater com a régua na mesa, exclamou:
— Mas que pouca vergonha é essa?! Isso não é mistério, é questão de lógica!
A classe inteira ficou em silêncio, aguardando a revelação.
— Esse homem não caiu da escadaria, não foi vítima de crime e nem um ser do além! Isso é caso de estudante universitário que bebeu fiado e desmaiou antes de pagar a conta!
A multidão ficou boquiaberta com tamanha sagacidade. O detetive Xerloque Rolmes tirou o chapéu em reverência. Padre Cícero, de onde estava, acenou com um leve sorriso. E a polícia, aliviada, seguiu para o bar da esquina para averiguar os fiados pendurados.
Enquanto isso, lá aos pés da escadaria, o “cadáver” abriu um olho, bocejou e, coçando a barriga, perguntou:
— E aí, já deu a hora do almoço?
E assim, mais um mistério foi resolvido com muito bom humor e um toque de genialidade nordestina.
O estudante escafedeu-se. Sua identidade foi mantida no anonimato, mas sua lápide manteve-se devidamente afixada no cemitério desenhado na lousa da sala de aula.
— E o salário, ó… repetiu Raimundo, ao retirar-se, piscando um dos seus olhos maliciosos.
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José Seabra é Diretor da Sucursal Regional Nordeste de Notibras
