Comum nos chamados governos de coalizão e nos grupos familiares com alguma coisa para dividir, o toma lá, dá cá é muito mais do que uma forma de facilitar a vida do administrador ou do chefe da família. É como um daqueles encontros ecumênicos abarrotados de comes e bebes, no qual todos falam, mas ninguém ouve ninguém. Ou seja, convocada para debater o sexo dos anjos, a reunião é encerrada tão logo termina a comida. No fim, poucos se lembram a razão da convocação extraordinária da assembleia. Nas três esferas de governo é a mesma coisa. Tem dindim, tem apoio. Não tem bufunfa, soy contra.
Embora haja uma clara tentativa de se mostrar diferente, a atual gestão de Luiz Inácio é muito parecida com todas as que já tivemos, inclusive com as duas que ele comandou anteriormente. A diferença é a herança recebida. Além de um palácio arrebentado pelos patriotas derrotados, o presidente eleito recebeu um governo entregue às baratas e aos ratos que se acumulam no Planalto Central, mais especificamente nos subterrâneos da edificação menos nobre e, por isso mesmo, mais contestada da Praça dos Três Poderes. A contestação é o ônus que pesa sobre a corcunda daqueles que acham bonito prometer e não cumprir.
Luiz Inácio recebeu um governo isolado, arrebentado por dentro e por fora, amaldiçoado e desacreditado interna e externamente. Para chegar do outro lado do túnel, diariamente Lula tem de catequisar a turma denominada histórica, aquela que é pau para toda obra, negociar com as diversas correntes internas, agradar os que querem colaborar, acarinhar os simpatizantes das causas petistas, sorrir para os ideologicamente mais próximos, receber os oportunistas, adular os que se aproximam por necessidade de poder, ignorar os que só criticam, mas adorariam participar da boquinha, e atender os fisiológicos, aqueles que estão juntos somente até a posse do novo governante.
Muito mais do que os anteriores, obviamente excluindo o imediatamente anterior, o governo de Lula da Silva é uma mistura de sentimentos. Muitos são republicanos, alguns de parceria séria e honesta, mas a maioria é medonho e terrivelmente mercantilista. É assim que a banda toca. Se um desafina, se o outro decide tirar o instrumento e se dois estão afônicos por falta de incentivo, a vaca vai literalmente para o brejo. O problema é quando esses sentimentos extrapolam o bom senso e viram crítica sem fundamentação lógica. Por exemplo, dia desses li de um desses patriotas inconformados que Lula viajava demais para o exterior.
Do ponto de vista da quantidade, até concordo. Já são 14 viagens internacionais em pouco mais de seis meses de gestão. No entanto, no caso em questão, o mais é realmente menos. Lula viaja muito porque, ao contrário de quem sucedeu, é conhecido, tem a simpatia dos poderosos do planeta e, portanto, recebe mais convites. Embora também concorde que as prioridades são acabar com a fome, recuperar os níveis de desemprego, reduzir os índices inflacionários e baixar as taxas de juros, a decisão de privilegiar a deteriorada política externa deve ser entendida como fundamental para que o país retome o prestígio, a força e, consequentemente, os investimentos capazes de ajudar o governo a voltar a crescer econômica e socialmente.
Daí, o trabalho diuturno do atual presidente brasileiro para mostrar ao Primeiro Mundo que o perfil de republiqueta de bananas ficou para trás. Ainda que os problemas internos sejam muitos, a ordem é romper o isolamento, decorrente do legado tóxico herdado do mandatário que não tinha intimidade alguma com os termos gestão e Presidência da República. Não à toa foi o único presidente pós-redemocratização a não ser reeleito. Fernando Collor e Itamar Franco não contam. Collor sofreu impeachment antes de completar dois anos de mandato e Itamar preferiu voltar para casa. Embora a recolhida patriotada não aceite, não fosse Luiz Inácio ter vencido a eleição em outubro, certamente a vaca já estaria no brejo. Teríamos perdido o bonde da globalização. Por falar em bonde, o resumo da ópera é simples: quem não muda de caminho é o trem. Vá, mas volte, Luiz Inácio. Sou da opinião de que mais vale um galo no terreiro do que dois na testa.
*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978