Sonho com o dia em que vou acordar sem ouvir, falar ou escrever nada sobre um passado recente que trouxe muitas tristezas para o Brasil e para os brasileiros. Pelo menos hoje tenho certeza de que não somos mais representados no exterior por uma caricatura. Uma pena que internamente ainda tenhamos de conviver com os filhos e com subservientes e sectários macacos de auditório desse caricato ser. Meu despertar desta manhã foi diferente. Levantei-me com um peso a menos nas costas. Em uma das dezenas de mensagens de bom dia, descobri que não sou o único entre os cerca de 8 bilhões de habitantes do planeta a não saber o que está acontecendo no mundo. Já sei, por exemplo, que dependo do tipo de lente para ver as coisas.
Por mais que o povo do ódio não aceite, estou convencido de que o aumento da produtividade dependerá cada vez menos de “homens fazendo” e mais de “homens pensando”. O medo dos que vivem fazendo é o falso discurso da “maioria nacional única”, personificada no homem branco, heterossexual e de classe média urbana. Foi assim com o representante da extrema necessidade de xingar e caluniar quem pensava diferente. Dono de vários ódios, ele estimulou o culto à masculinidade, a negação do feminino, a cultura do estupro, a supremacia do militarismo, o desdém a artistas e intelectuais, a aversão a gays, negros e demais minorias, além da identificação de inimigos como causa unificadora. Erotizou de tal maneira sua própria figura que acabou na sarjeta da imbrochabilidade política, também conhecida por inelegibilidade.
Fora os mesmos, quem permanece dando vez e voz ao mito? O silêncio ensurdecedor das últimas semanas é a prova de que nem ele consegue mais ouví-lo. Lembro que já tive várias fases, fui – e sou – várias pessoas em uma mesma existência. Tudo isso porque descobri cedo que a vida começa quando a gente compreende que ela não dura muito. Daí, decidi agir sempre conforme os preceitos do guru Bob Marley, cuja recomendação simplória é para que os homens, principalmente os mandatários, não vivam para que suas presenças sejam notadas, mas para que suas ausências sejam sentidas. Mais do que o Garibaldi de coturno, o moço de Garanhuns entendeu o recado. Por isso, alcançou a terceira encarnação.
Ele não teve medo de trocar o roteiro de sua vida por um com fim mais emocionante. De acordo com a verve contista de Nelson Rodrigues, nos quatro anos de mandato, o “capetão” optou por colocar o bode no gabinete. Garganta pura, entrou de sola nas coisas mais serenas e potocou nas mais severas. Depois do “maricas” e do “caguei”, foi censurado pelo imaginário popular. O resultado foi rápido: toda sua nudez foi castigada e, como sonhado pelos antagonistas, circulou, nadou, comeu frango com farofa, andou de jet ski, mas acabou no Irajá. É a prova de que, apesar da irreversível repetição de fatos e personagens, o cotidiano em si é maravilhoso. Quando lembro, não faço nada mais do que registrá-lo.
Fujo da matemática, mas, de vez em quando, me surpreendo maravilhado com os números, principalmente aqueles iguais ou superiores a 60. Li recentemente que a atual população da Terra é de cerca de 8 bilhões de habitantes. Para a maioria das pessoas, este é um número grande. No entanto, em termos percentuais, podemos apreciá-lo em uma dimensão mais humanamente administrável. Não é meu forte, mas a análise numérica é relativamente mais fácil de entender. Do total de habitantes, 77% têm casa própria, 23% não têm onde morar, 21% são superalimentados, 63% podem comer refeições completas e 15% estão desnutridos, pois comeram a última refeição, mas não passaram para a próxima. O Brasil deve liderar este índice. Dos números mais interessantes, destaco a incoerência entre os 75% com telefones celulares e os 30% sem acesso à internet.
É como se tivessem água sem a bica. Entre os cidadãos do mundo, apenas 7% receberam educação universitária. Os analfabetos somam 17%. O mais alarmante é que, da população mundial, 26% vivem menos de 14 anos, 66% morrem entre 15 e 64 anos e somente 8% têm mais de 65 anos, ou seja, de cada 100 pessoas no planeta, só oito conseguem ultrapassar os 65 anos. Jair é um desses, mas nunca se imaginou abençoado. Incluindo o Messias, a conclusão não poderia ser mais óbvia: se você tem casa própria, come três refeições completas, bebe água limpa, tem carro, celular, pode navegar na Internet e conseguiu fazer faculdade considere-se parte do minúsculo lote privilegiado da população da Terra.
Meu caro mito de periferia, somos um dos sortudos. Não espere ter tudo para aproveitar a vida. Saudações de Lula lá.
*Mathuzalém Júnior ´jornalista profissional desde 1978