Eles se encontraram pela primeira vez há 58 anos. Mauricio de Sousa queria muito ter um gibi. Ziraldo já tinha A Turma do Pererê. Mauricio arrumou a mala com algumas roupas e seu material de desenho e pegou um trem de Bauru para São Paulo e depois para o Rio. Era lá que ficavam as editoras que publicavam quadrinhos e o desenhista em início de carreira queria ver se Ziraldo o ajudava a entrar em sua editora para planejarem uma nova revista.
“Eu me hospedei num hoteleco vagabundo do cais. Ziraldo me recebeu muito bem. Era um moço simpático, agradável, foi carinhoso com o colega, mas me passou uma notícia que não foi legal. Ele disse que adoraria, mas que a editora não era dele e o grupo estava atravessando uma crise financeira e não podiam pensar em lançar mais nada”, relembra hoje, aos 83, Mauricio de Sousa. Ele ficou desanimado, e então Ziraldo contou que queria fazer tiras nos jornais dos Diários Associados e perguntou se ele consideraria fazer as tiras do Pererê.
Voltou para o hotel, fez uma meia dúzia de tiras e voltou com o material embaixo do braço na esperança de agradar a Ziraldo. Agradou, e ouviu dele que conversaria com o pessoal dos Diários Associados e daria notícias.
Um trem para São Paulo, outro para Bauru. Ao chegar lá descobriu que sua filha tinha nascido. “Quando a Mônica nasceu, eu estava pedindo um emprego para Ziraldo”, ri, hoje. Batizou a garota sem sonhar que ela viraria sua personagem e ficou esperando a resposta de Ziraldo. “Esperei, esperei, esperei. E estou esperando até hoje. O Ziraldo não conseguiu interessar o pessoal e, pior ainda, ele perdeu as tiras”, ri mais ainda.
“Perdi. Essas tiras foram as únicas coisas que perdi na vida. Uma tristeza profunda”, lamenta Ziraldo, 85 anos. “Hoje, elas valeriam R$ 1 milhão”, brinca.
Muita coisa aconteceu entre aquela tentativa frustrada de uma parceria e o reencontro dos dois neste sábado, 4, na Bienal do Livro de São Paulo. Ziraldo escreveu uma centena de livros que foram lidos por diversas gerações de brasileiros – e estrangeiros também. E criou o inesquecível Menino Maluquinho. Mauricio de Sousa, três anos depois daquele encontro, criou a Mônica, sua personagem mais famosa, e, ao longo dos anos, sua turma só cresceu.
Dois dos personagens mais importantes da literatura brasileira, que fizeram muita criança gostar de ler, se encontram pela primeira vez num outro livro: MMMMM – Mônica e Menino Maluquinho na Montanha Mágica. Uma história mirabolante criada por Manuel Filho e ilustrada pelos dois artistas que será lançada neste sábado, 4, na Bienal do Livro de São Paulo.
Um crossover há muito esperado pelos fãs dos autores e das histórias e que deixou os amigos felizes e saudosos – “do tempo em que Ziraldo tinha cabelinho preto e eu não tinha barriga”, como brinca Mauricio.
Mirabolante – Mauricio de Sousa e Ziraldo já trabalharam juntos antes, mas num projeto que em nada se assemelha ao crossover de seus icônicos personagens em MMMMM – Mônica e Menino Maluquinho na Montanha Mágica. Tempos atrás, Mauricio escreveu O Reizinho no Castelo Perdido e Ziraldo ilustrou. E então eles trocaram de posição em O Maior Anão do Mundo. Nos dois casos, os personagens eram inéditos.
Agora a história é outra e envolve uma terceira pessoa. Manuel Filho leu tudo o que Ziraldo escreveu e de tão fã que era da Turma da Mônica mandou, aos 8 anos, uma carta para o gibi do Cebolinha, que foi publicada. O tempo passou, ele virou escritor e agora, aos 50, foi o escolhido pela Melhoramentos e Mauricio de Sousa Produções para criar o enredo que marca o encontro entre Mônica e o Menino Maluquinho. “Até me arrepia pensar nisso Saí do gibizinho para a capa do livro com os dois mestres”, conta o autor para a reportagem.
Sua história é mirabolante. Os dois personagens, cada um no seu canto, depois de devorarem barras e barras de chocolate encontram o tão procurado bilhete dourado que os levará para uma aventura na Montanha Mágica. Eles podem levar quatro amigos. Lá, tudo começa com uma partida de futebol. Tem um drone, que é um dos personagens e faz gincanas com as crianças. Num determinado momento Mônica e Menino Maluquinho são engolidos pela montanha, se perdem da turma e cada um vive a sua aventura. O livro vai se modificando. Tem hora que começa, tem hora que recomeça e tem hora que volta, como explica o autor. No meio da narrativa, aparece uma HQ.
Há referências literárias a todo instante e a história tem várias camadas de entendimento. O leitor vai ter contato com personagens e autores que já conhece ou com quem ainda vai se deparar: Alice, Dorothy, Tom Sawyer, Luluzinha, Emília, Pererê, Pluft, Feiurinha, Zezé, Thomas Mann…
“Gosto de dizer que esse livro foi um livro escrito por alguém que é meio maluquinho ou que levou uma coelhada na cabeça”, brinca Manuel.
Ziraldo se reconheceu justamente nessas referências incluídas pelo autor – que também homenageou Flicts, do cartunista, na capa de MMMMM. E reconheceu o estilo de Mauricio de Sousa no enredo de aventura. “Nunca faço histórias longas, enredadas. Eu estiquei e o Mauricio encurtou”, diz Ziraldo.
Dois artistas com estilo diferente, uma legião de leitores e com muito respeito e admiração um pelo outro.
“O Mauricio é muito criativo e um desenhista extraordinário que acabou virando um império. Vendeu na Europa, no Japão; é um êxito. E eu fiquei fazendo a minha historinha”, comenta Ziraldo. “Ele tinha esse projeto de vida: fazer uma indústria de histórias em quadrinhos. Acho que o meu era sair na enciclopédia ”
Já Mauricio de Sousa diz, sobre o amigo, que ele e sua “turma” transitam numa área muito diferente. Até começar a envelhecer seus personagens para acompanhar os leitores que também estavam crescendo, seu universo era mesmo o da história infantil. Para ele, a proposta filosófica também é diferente na obra dos dois. “Ziraldo é para um leitor com uma outra cabeça, mas felizmente os nossos leitores se dão bem. A pegada do Ziraldo é um pouquinho mais avançada nos temas. A minha é mais ingênua, mais roceira aqui, simplesinha ali”, define Mauricio. E completa: “Ziraldo é mais intelectualizado. A vivência na área política fez com que ele tivesse um jeito de tratar as coisas de um modo diferente do meu. Ele é mais cobrador e eu sou mais tranquilo”.
E como veem os personagens que se encontram agora? “Mauricio é muito craque. Todos os seus personagens têm temperamento”, diz Ziraldo que, olhando para trás, para o menino que foi, não se identifica exatamente com ninguém da Turma da Mônica – e volta a elogiar o desenhista. “Meus personagens são meus amigos de infância. Eu fiquei em Caratinga e o Mauricio abriu espaço para o mundo. Ele estava mais certo do que eu. Ele é o sucesso e o meu Pererê acabou.”
“O Menino Maluquinho é o moleque típico brasileiro, que tem liberdade, é ousado, inteligente, esperto. É o moleque que eu gostaria de ter sido.” Não foi? “Fui caipirão. Fui Chico Bento”, responde, e ri.
A conversa continua neste sábado, 4, na Bienal do Livro, quando a dupla conta ao público outros detalhes sobre o aguardado crossover. Começa às 15h, na Arena Cultural, e segue com autógrafos.