Metamorfose ambulante
Monopólio do amor ao Brasil não é de “patriotas” bolsonaristas
Publicado
emGostar, amar, se apegar, idolatrar e defender alguém ou alguma coisa é mais do que legítimo. É inerente ao ser humano. O problema é quando essa legitimidade é extrapolada, isto é, quando o interlocutor ou pregador decide enxergar somente aquilo que sua idolatria permite. É o tal do fanatismo que, partindo de qualquer lado, área, segmento ou classe, costuma deixar a pessoa cega e surda. Muda, jamais. Como definiu Friedrich Nietzsche, a adoração é a única força de vontade acessível aos fracos. Antes de prosseguir, cito Nietzsche com alguma frequência apenas pela inteligência do filósofo, crítico e poeta alemão. Faço esse preâmbulo para evitar que, como opositor vanguardista de dogmas e da existência, ele e eu possamos ser taxados de comunistas.
Para ilustrar, Friedrich ficou marcado por seu ódio ao socialismo, inclusive nas suas formas mais adocicadas. Dito isto, reitero que, apesar de meus posicionamentos contrários ao patriotismo exacerbado, ao fervor e ao conservadorismo, nada tenho de comunista. Aliás, o que é ser comunista para aqueles que denominam de “comunas” todos os que se manifestam contra a tirania? Como eles não sabem, é melhor deixar como está. Seja à direita, seja à esquerda, seja ao centro, não gosto de nenhum tipo de fanatismo. Segundo os pensadores, o fanático vive de inventar inimigos. É um ser irracional, que tortura e mata em nome de suas crenças. O 8 de janeiro está bem vivo em nossas memórias. A data nunca nos permitirá mentir.
Verdade absoluta não existe. Ela não tem dono. Em outras palavras, nenhum brasileiro tem o monopólio do amor ao Brasil. Nem mesmo os “patriotas”. Por isso, benevolência, paciência e, sobretudo, consciência são as minhas palavras de ordem para dois mil e lá ele. De modo a evitar conflitos íntimos, nem esse número cabalístico usarei este ano. Desisti, por exemplo, de criar narrativas a respeito daquele governo que fez muita gente chorar. Para não bater de frente com a convicção alheia, melhor dizer que ele foi ótimo. Como diria nossa poetisa maior, perdeu porque não ganhou e não ganhou porque perdeu. Poderia ter empatado, mas não empatou porque perdeu. Simples assim.
Benevolente e fingindo admitir que o preto é branco e que a urna é violável, também decidi aceitar sem replicar a cara de pau do moço que diz que o 8 de janeiro foi obra da esquerda. O que fazer contra a ignorância de outrem? Nada. Apenas lembrar que a obstinação e a inteligência não conseguem conviver harmonicamente. O fundamentalismo é o próprio toque de arrogância e de indiferença com todos os que não compartilham com a visão de mundo de seus pregadores. Mais difícil é engolir apoiadores e financiadores ocultos da fracassada intentona participando da festa em que a Casa do Povo comemorou a democracia e a harmonia entre os poderes. O que fazer para frear a hipocrisia festiva e barata de alguns de nossos representantes?
Faço minhas as palavras da ativista paquistanesa Malala Yousafzai, autora do sábio e verdadeiro ditado “A caneta é mais poderosa do que a espada”. Segundo ela, os extremistas têm medo dos livros e das canetas. Assim como as mulheres, o poder da educação os assusta. O poder da voz feminina os apavora. Embora haja repulsa de um extremo pelo que saiu das urnas eletrônicas, o mundo inteiro se recorda de que partiu das mulheres boa parte dos votos que garantiram a liberdade ao país. O restante veio dos nordestinos, cuja maioria está conseguindo agora o acesso aos livros e às canetas.
Considerando que do fanatismo à barbárie não há mais do que um passo, iniciei o ano preferindo uma novena à irritação ou aos queixumes desrespeitosos àqueles que, por conta da devoção intolerante, facciosa e maníaca a mitos, não abrem mão de que seu pirão saia primeiro, independentemente de que a farinha seja pouca. Estou benevolente. No entanto, é impossível encerrar esta narrativa sem incorporar e aprimorar o espírito anarquista de Stanislaw Ponte Preta: A prosperidade dos conservadores extremados é a prova de que eles lutariam pelo progresso do subdesenvolvimento do povo brasileiro. Resumindo, melhor ser uma “metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”.
*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978