Um mês depois do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips serem mortos a tiros de espingarda na região do Vale do Javari, os motivos do crime ainda são uma incógnita. Não tenho qualquer vocação policial, mas é difícil acreditar que os três pistoleiros mequetrefes agiram por conta própria e apenas por causa de montinhos de peixe ou por alguns gramas de ouro. Claro que não. Pode até ser peixe e ouro, mas o quantitativo deve ser medido a partir de toneladas. A Polícia Federal trabalha para chegar em eventuais mandantes. Provavelmente nunca chegarão nos tubarões, como jamais chegaram aos financiadores dos assassinatos de Mariele Franco e de Anderson Gomes. Ambos foram mortos há mais de quatro anos. Então, o que são 30 dias?
Por razões óbvias, governo e apoiadores raiz nem lembram mais da Amazônia esquartejada. Para os destiladores do ódio, as mortes de Bruno e Dom são página virada. Não se trata de uma afirmação insensível, comunista ou eleitoreira. É fato. Basta voltar um pouco no tempo e lembrar das reações do presidente da República. O Brasil inteiro voltado para o Vale do Javari e o sempre impoluto mandatário ora silenciando, ora tergiversando sobre os crimes. De forma perversa, chegou a afirmar que Dom Phillips morreu por descuido ou porque era “malvisto” na região. E lembram a razão de tanto ódio contra o jornalista inglês? O próprio mito respondeu: “Por causa da série de reportagens sobre garimpo ilegal no Vale do Javari”. Hoje, a única preocupação é com o mentiroso pacote de bondades, cujo objetivo eleitoreiro tem o beneplácito do não menos mequetrefe Congresso Nacional.
Tudo indica que os tais mandantes, se existirem, sumiram na imensidão dos rios locais. Desconheço a região, mas, considerando a presença diária e maciça das Forças Armadas e de integrantes da Polícia Federal por ali, não me parece de bom alvitre consignar que aquele pedaço seja terra de ninguém ou casa de Mãe Joana. Por isso, prefiro achar que estou redondamente enganado. Ou não? Pode ser, pois, apesar de todo esse aparato, todos que já se aventuraram a trabalhar pela preservação da Amazônia ou em defesa dos indígenas pagaram com a vida. Os últimos foram Bruno Pereira e Dom Phillips, este, bem nascido e que escolheu o Brasil para viver e formar família. Entretanto, foi justamente aqui que ele foi abatido e esquartejado como um porco gordo.
É o Brasil de nossos dias, país sem lei e onde a banalização da morte, do ódio e da tortura é muito mais séria do que a dificuldade encontrada por determinados cidadãos para viver em sociedade. E são esses que, desajustados por um ódio insano, tentam justificar o injustificável. Nas raras vezes em que falou a respeito da barbárie da Amazônia, o presidente brasileiro apenas confirmou o que a maioria já sabia. Na prática, o que ele sugere é que, no Brasil sob seu comando, sonhar, verbalizar ou escrever verdades pode ser sinônimo de sentença de morte. Temente a Deus como diz ser, também quis dizer que, como não tem vocação ou qualquer interesse em garantir segurança a ninguém, brasileiros e estrangeiros residentes precisam apoiar e participar do pomposo processo de liberação de armas.
A ideia é simples. Auxiliado pelo Estado padrasto, cada cidadão tem de comprar sua própria bazuca para se proteger… De quem mesmo? Não importa. Importante é que todos nos lembremos que, segundo informação do Messias do Cerrado a religiosos de Brasília, Jesus não comprou pistola porque não tinha naquela época para vender. É verdade. Mas, pelo visto, já tinha apoiadores raiz que ouviam calados esse tipo de baboseira. Muito mais relevante é não esquecermos que, naquela época, quem não existia era o Jair Bolsonaro do Brasil. Os presidentes poderiam ter um abecedário de ruindades, mas tratavam o país e o povo com cortesia, respeito e sem soberba. Por isso, éramos felizes e sabíamos.
Pelo menos irradiavam felicidade os que, como eu, abominam teses de truculência, desprezo, descortesia, desconsideração e maldades contra antagonistas. Quanto a Jesus armado, vale lembrar que esse tipo de heresia normalmente é cobrado em silêncio e com juros e correção monetária. Que o diga John Lennon, o magistral compositor e intérprete que, um dia, bolsonaristicamente, se achou mais importante do que Jesus Cristo. Morreu aos 40 anos, não virou super-herói, sequer decretaram feriado e hoje só é lembrado quando comparamos o que era bom com o que é ruim. Lennon desvirtuou parte de sua caminhada, errou no que disse, mas era do bem, como eram do bem Bruno Pereira e Dom Phillips. Os do mal um dia terão de se explicar. E esse dia está bem próximo. Quanto ao esquecimento da barbárie da Amazônia, nada mais natural. Infelizmente.