Talita Matias de Oliveira e
Luis Carlos Alcoforado
Crescem as infrações contra a ordem econômica, motivo por que se devem garantir ao Estado medidas protetivas e inibitórias mais eficazes para assegurar a preservação da segurança do regime jurídico, no combate às práticas infracionais, sem sacrificar, totalmente, a atividade empresária nas suas dimensões materiais e imateriais. O sistema jurídico repressor se acha pejado de leis, preceitos e princípios, quase todos em fase experimental pela inovação de seus alcances e pela aplicação de seus comandos.
No campo legislativo, houve reforços substanciais, com a introdução de institutos administrativo-penais, dentre os quais se destacam a colaboração premiada e o acordo de leniência, que se prestam a resolver e mediar conflitos entre o Estado, titular do direito de punir, e a pessoa jurídica, infratora.
Considera-se acordo de colaboração premiada instrumento de investigação criminal pelo qual é concedida recompensa legal ao acusado que admite a sua participação no delito e contribui de forma eficaz para a resolução do crime.
A operação jurídica mediante a qual ocorre a colaboração premiada guarda mais desconforto e dificuldade na execução do que na identificação do ambiente em que se celebra o acordo entre o Ministério Público e a parte delatora, com a homologação do Judiciário, intervenção sem a qual se frustra a eficácia da delação.
Já em relação ao acordo de leniência, avultam-se os problemas acerca dos órgãos envolvidos, aos quais se confere legitimidade para firmá-lo.
Reputa-se acordo de leniência o pacto firmado entre uma entidade estatal e um infrator confesso (pessoa jurídica ou pessoa física), pelo qual o transgressor compromete-se a cessar a prática ilegal e a colaborar para as investigações em troca da suavização da punição ou mesmo a extinção da pena.
A legitimidade para firmar o acordo de leniência, nos casos de atos lesivos à Administração Pública, é da autoridade máxima de cada órgão ou entidade, sendo que, no âmbito do Poder Executivo Federal, atribui-se a competência à Controladoria-Geral da União (CGU), conforme disposto na Lei nº 12.846/2013, comumente conhecida como Lei Anticorrupção.
Já especificamente para os crimes contra a ordem econômica, a Lei nº 12.529/2011 prevê a legitimidade do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) para a celebração do acordo de leniência antitruste com as empresas ou pessoas físicas envolvidas em cartel ou em práticas anticoncorrenciais coletivas.
Tolda-se a competência do Tribunal de Contas da União no que se refere à celebração de acordo de leniência, preservado, contudo, o poder de fiscalização das referidas avenças quanto à sua legalidade, legitimidade e economicidade, desde a manifestação do infrator confesso em colaborar com as investigações até a apreciação dos resultados obtidos com o acordo.
Entretanto, é na figura do Ministério Público que reside obscuridade quanto à legitimidade para a proposição dos acordos de leniência, em ambiente administrativo, sem jurisdição.
Por disposição legal, confere-se legitimidade ao CADE e não ao Ministério Público, situação em decorrência da qual a intervenção do parquet restaria descartada no âmbito do processo administrativo.
Contudo, recolha-se como censurável conferir eficácia aos efeitos criminais da composição de leniência no processo administrativo, sem a participação do Ministério Público.
Trata-se de controvérsia muito discutida, com grau de efervescência doutrinária, por força da qual surgiram três compreensões distintas acerca da atuação do Ministério Público nos acordos de leniência.
A primeira posição entende que o Ministério Público estaria impedido de ingressar com a ação criminal, uma vez firmado o acordo na esfera administrativa.
Tal entendimento encontra fundamento na Lei nº 12.529/2011, que atribui ao CADE livre motivação e livre convencimento para celebrar o acordo com o agente infrator. Por conseguinte, o Ministério Público só poderia promover a ação penal nos casos em que não houvesse a celebração de acordo de leniência administrativo.
Completamente desarrazoada essa compreensão, pois não se pode retirar totalmente a legitimidade, rediga-se, constitucional, do Ministério Público com relação à ação penal pública.
Cuida-se, destarte, de verdadeira afronta à vontade do constituinte, em que se viciaria a competência do órgão ministerial.
O segundo entendimento defende que não pode o legislador olvidar-se que a ação penal pública é regida pelos princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade, segundo os quais o Ministério Público possui o dever legal de promover a persecução criminal, não podendo exercer juízo de conveniência quanto ao oferecimento da denúncia e, uma vez iniciada a ação penal, não poderá o parquet dela dispor.
Nesse diapasão, a segunda posição alega que tais princípios justificam o impedimento dos efeitos penais no acordo de leniência e, assim, o Ministério Público poderia promover a ação penal mesmo com a celebração do acordo na esfera administrativa.
Contudo, esse entendimento gera um verdadeiro desestímulo para os infratores em realizar o pacto de leniência, pois estariam se auto-incriminando em troca de benefícios apenas na esfera administrativa, sem a garantia da leniência penal.
Correm o risco, portanto, de serem denunciados pelo cometimento de crimes contra a ordem econômica e, consequentemente, penalizados, o que afasta o encorajamento dos infratores para colaborar com as investigações.
Já a terceira posição aduz que a celebração do acordo de leniência imprescinde da consulta e do consentimento do Ministério Público para que, ao final do cumprimento do pacto, seja decretada a extinção da punibilidade do agente.
Ora, diante dos entendimentos mencionados, esse parece o mais razoável, haja vista que, como órgão constitucionalmente incumbido por promover a ação penal pública, o Ministério Público haveria de afiançar ou anuir com o acordo de leniência, a fim de que se garantam os efeitos do pacto na esfera criminal, ainda mais quando se fala em renúncia da ação penal.
Trata-se de uma mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal, sem dúvidas.
Contudo, o sistema jurídico brasileiro já prevê algumas exceções ao referido princípio, sendo a própria delação premiada, prevista na Lei nº 12.850/2013, uma das mais importantes.
O que se vislumbra é que o acordo de leniência nada mais é que uma espécie de delação premiada e, por conseguinte, a terceira posição é a que se demonstra mais plausível para a resolução da controvérsia exposta, por melhor se adequar ao ordenamento jurídico e contribuir para a higidez do sistema normativo.
Nesse sentindo, a anuência do Ministério Público se mostra como elemento que integra a qualidade e eficácia do negócio jurídico do acordo de leniência, premissa em decorrência da qual se esvai o interesse deste órgão em propor ação penal pública.
Justifica-se, assim, a mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal em face da participação do Ministério Público na celebração do acordo de leniência, suficiente para punir os crimes contra a ordem econômica.
A participação do Ministério Público na celebração do acordo de leniência se revela imprescindível para assegurar (e reforçar) a supremacia do interesse público, pilar do regime jurídico brasileiro, de forma a garantir a máxima eficácia à vultosa contribuição do legislador no combate às infrações contra a ordem econômica, que é o acordo de leniência, e dirimir os conflitos entre os infratores e aquele que tem o dever de punir, o Estado.