Fidelidade felina
Muito além do Aconcágua há senhas, dólares e um fundo infinito

“Ah! Os gatos são amigos fiéis…criaturas superiores e honestas: não suportam humanos.”
1
O salão central era um labirinto.
Duas rampas sobrepostas impunham a subida.
A primeira, um caminho dedicado aos viciados em lambidas de vacas, de gatos e de cachorros de raça pura.
A segunda, uma rampa mais longa, cheia de sacos de lixo brilhantes margeando a parede branca com dezenas de aberturas redondas, perfeitas.
Nas aberturas, todo tipo de bundas humanas: torneadas, magras, celulíticas, atléticas.
O jogo ali era o viés da rampa anterior. Não ser lambido, mas lamber.
Ele era viciado em jogos:
“Entender o porquê de tudo isto passa a ser um componente importante nas questões de tantos riscos; os jogos não teriam sabor sem riscos e dúvidas, não? Sem o imponderável, seria melhor ir vivendo e passando as mãos sem mais alguma emoção; lamber e ser lambido sem sentir quais as sensações possíveis dos atos e das rampas; e assim, chegar a nenhuma imagem construída verdadeiramente em nossa existência; seria um jogo besta lutando apenas pela vitória ou derrota. Pura demência!”
Cumpriu o percurso da primeira rampa após três minutos de lambidas de duas vacas, três cachorros e um gato chinês. O homem detestava cachorros. Considerava os caninos fiéis demais aos seres humanos. Coisas de amor, afeto, apego e perdição:
“Ah! Os gatos são amigos fiéis! Criaturas intrigantes e sinceras, adoráveis, meigas e singelas; não suportam os humanos e ficam com a casa… Isto é fidelidade ao objeto, ao conquistado!”
As bundas estavam lá.
Na segunda rampa, as bundas eram fartas. Ele estendeu a mão num gesto mecânico e ao sentir o primeiro contato com as carnes, vomitou. Algo lhe trouxe a potência desejada. De viés. O calor do outro o assustava. A intimidade o fragilizava. Enquadrou-se e seguiu em direção à terceira etapa do jogo. Chegou ao jardim de inverno.
2
O menino-tronco fez a pergunta-senha:
– Senhor, qual o caminho para Santiago de Compostela? Pela Espanha, pelo mar, pelo ar, pelo sol ou pela alma?
O homem pensou rápido e respondeu:
– É claro que são muitos os caminhos para a casa de Tiago.
– Pode passar, mas deixa aqui cem dólares pelo pedágio – respondeu o menino-tronco, chamado pelos nativos dali de bunda-a-jato.
O fato é que, depois do desastre nuclear, esses meninos especializaram-se em andar sem pernas e troncos sobre skates, como jatos pelos salões da colônia de férias ao pé da grande montanha.
O homem pagou cem dólares e passou.
Com sono, entrou no jardim de inverno. Não importa. Passara em mais uma fase do jogo. Estava ali. Observou as estátuas de gelo, as plantas de cristais e a imensa manta de neve que o levaria ao átrio final.
Lembrou-se das informações colhidas na agência de turismo:
“Sobre o telhado do mundo reinam águias e condores. Desde que o suíço Zubriggen chegou até à Sentinela de Pedra, em 1887, centenas de outros seres tentam passar a marca e beber o vinho dos deuses. Numa altitude de quase sete mil metros de altura, há o único vinho do planeta elaborado com uvas do deserto e água do degelo dos Andes. Mas, não se iludam, as
nevascas que caem aqui são mais fortes que os delírios prometidos pelas bruxas da montanha de pedra e gelo. Cuidado!”
3
Outros cem dólares e o homem chegou ao ponto de fuga.
Estava diante da Grande Rampa. Um imenso mar de gelo e neve, movediço, o esperava até a minúscula abertura para o além. Um mundo de gelo, um branco que abarcava tudo e queimava as retinas. O homem estava equipado para a jornada decisiva: roupa térmica, esquis, óculos infravermelhos e um coração aos pulos. O vento frio gelando o rosto, o desejo das bundas de gatos –nunca a dos cachorros e muito menos a dos humanos- o menino-tronco singrando por entre as suas pernas e a descida vertiginosa. Depois, a subida aguda até a passagem final.
Antes da chegada, leu mais uma vez as informações do folheto oferecido pela agência de turismo:
“O mundo da neve é único e se desfaz no ar, mal o inverno começa a sua agonia. Atravessar as estradas entre montanhas de gelo é uma experiência de solidão voraz. A eternidade expressa nos picos que tocam o céu e o homem reduzido a minúsculos pontos negros enquanto a montanha o dilacera e o enternece. Um mundo inteiramente surpreendente que repousa na potência da alma e o homem pode não voltar.”
Súbito, o final da rampa, o salto no vazio.
A vertigem, a potência.
Muito além do Aconcágua pode estar a felicidade.
Antes do impacto total, um silêncio absoluto e racional.
O infinito.
