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Mulheres enfrentam furacão do licenciamento ambiental

No acirrado debate que se instalou no Brasil sobre o projeto de lei que cria a Lei Geral do Licenciamento, quatro mulheres sintetizam o teor dos argumentos de um lado e do outro e viraram símbolo daquela que se tornou a principal frente de batalha entre o ambientalismo e alguns dos principais lobbies econômicos do país: Kátia Abreu, Izabella Teixeira, Rose Hofmann e Suely Araújo.

A senadora do Tocantins ligada ao agronegócio; a ex-ministra do Meio Ambiente (de 2010 a 2016); a atual secretária de Apoio ao Licenciamento do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) do governo federal; e a ex-presidente do Ibama (gestão Temer) já se cruzaram em diversos momentos cruciais da história ambiental recente do Brasil – e em diferentes configurações: ora em oposição, ora em parcerias ou convergências pontuais.

Não que o debate em torno do licenciamento ambiental se encerre nelas. Pelo contrário. Há diversos outros protagonistas importantes nessa história. Mas analisá-la sob o ponto de vista dos discursos dessas quatro mulheres – duas políticas e duas técnicas – ajuda a entender os interesses que estão em jogo na tramitação, os pontos onde talvez seja possível avançar e os nós que dificilmente serão desatados.

Para esta reportagem, a Agência Pública entrevistou três delas – somente Kátia Abreu não aceitou conversar conosco. Segundo sua assessoria, ela só deve atender a imprensa depois de estudar o processo e ouvir as diferentes partes. Mas sua participação, juntamente com Izabella e Suely, em um webinar da Fundação FHC sobre o tema, nos ajudou a caminhar pelo labiríntico pensamento da senadora.

E por que elas? Atribui-se à analista ambiental Rose Hofmann uma boa parte do conteúdo do novo texto sobre o licenciamento ambiental – e também a defesa do projeto como representante do governo federal. Suely Araújo, hoje especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima, está na linha de frente dos ambientalistas e é autora da expressão que mais vem sendo usada por quem é contra o projeto – que ele seria a “mãe de todas as boiadas” – em referência à fatídica fala do agora ex-ministro Ricardo Salles.

Na falta de uma posição por parte do Ministério do Meio Ambiente como defensor oficial da área, nove ex-ministros da pasta se reuniram em diversas manifestações nas quais apontaram os riscos das mudanças propostas. Izabella Teixeira faz parte desse grupo e vem se destacando com uma voz forte na tentativa de costurar os consensos possíveis.

A senadora Kátia Abreu (PP-TO), que foi ministra da Agricultura no segundo mandato de Dilma, é, das quatro, a que entrou por último no debate recente. O tema já estava em seu radar em outros momentos ao longo dos 17 anos desde que a primeira versão do PL foi apresentada. Mas agora ela é a relatora que vai levar para o Senado a versão do texto que será votado na casa.

Kátia assumiu a relatoria no começo de junho, após o PL ser aprovado em maio na Câmara – às pressas e cercado de polêmicas. Apesar de a primeira proposta de uma lei geral do licenciamento ser de 2004, e o tema já ter sido debatido quase à exaustão em suas mais diferentes versões ao longo desse tempo, o texto atual, relatado na Câmara pelo deputado Neri Geller (PP-MT) não passou por debate nenhum.

O parecer foi apresentado por Geller, que é vice-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), no dia 10 de maio. No dia 12, já estava aprovado no plenário da Câmara pelo placar de 300 votos a favor e 122 contra.

Criticado por cientistas, ex-ministros, ambientalistas e até por alguns representantes do setor produtivo – que consideram que o PL cria mais um regime de exceção do que de regra geral, fragilizando a proteção ambiental –, o texto tem apoio da FPA, da indústria e, claro, do governo, que tem interesse não só em atender aos setores econômicos, como em liberar grandes obras de infraestrutura.

Lições do Código Florestal
A disputa remete à que ocorreu no início dos anos 2010 em torno de outra legislação, o Código Florestal, que acirrou os ânimos entre ambientalistas e ruralistas. Se já naquela época se insistiu na dicotomia entre proteção ambiental e direito de produzir, agora parece que proteger o ambiente é impedir o desenvolvimento como um todo.

Em 2012, duas das nossas personagens estavam em lados opostos da disputa. Izabella, como ministra do Meio Ambiente, tentava impedir que a reforma do Código Florestal diminuísse as áreas a serem preservadas em terras privadas e levasse a uma anistia maior de desmatadores.

A senadora Kátia, que era também presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA, argumentava que o Brasil já tinha área protegida demais, que faltava espaço para a agropecuária e que os pequenos produtores eram os que mais sofriam com um Código Florestal muito restrito.

Nove anos depois, ver as duas debatendo sobre o licenciamento ambiental tem gostinho de déjà-vu. Em um webinar realizado em 15 de junho pela Fundação FHC, Kátia comparou a votação do PL do licenciamento com a que aprovou na Câmara a reforma do Código Florestal em 2012.

“Eu acho que os exageros é que levaram à mudança do Código Florestal. Nós tivemos uma votação de 410 votos a favor a 63, e o mundo não acabou, tudo continuou como antes. O caos não veio como tantos outros apregoavam no Brasil”, disse a senadora. Izabella se agitou na cadeira de sua casa ao ouvir isso.

“Eu fico muito preocupada, não só com o licenciamento rural, mas com o das estradas do país, com o excesso de burocracia”, continuou Kátia. “Assim como o país cansou daquela criminalização que o Código Florestal impunha no passado, (agora) o licenciamento foi aprovado com 300 votos a 122. Não teve uma votação maior porque de fato tem algumas questões que precisam ser avaliadas, mas eu não julgo esse projeto com a negatividade com que a ministra Izabella ou a ex-presidente do Ibama Suely (julgam).”

A fala de Kátia gerou incômodo porque o desmatamento da Amazônia, que chegou a sua menor taxa em 2012, voltou a subir no ano seguinte. E muitos especialistas atribuem parte da responsabilidade por essa alta justamente à mudança do Código Florestal, que teria gerado uma expectativa de impunidade nos desmatadores, já que a lei poderia ser alterada a qualquer momento para acomodar crimes ambientais mais recentes.

Mas o que fez Izabella sacudir na cadeira foi o fato de que a ampla vitória da mudança do Código Florestal na Câmara foi só o primeiro passo. O texto mudou no Senado. Foi aprovado com vários vetos pela presidente Dilma Rousseff e uma medida provisória foi editada para preencher os buracos. Passado tudo isso, a lei ainda foi contestada e só considerada constitucional pelo STF em 2018.

O risco de judicialização é justamente uma das ameaças que pairam sobre o PL do licenciamento ambiental. “O que eu estou dizendo é que teve que ir ao Supremo para consolidar. Não podemos ter discussões no Congresso que toda vez que tem uma divergência tem que ir ao Supremo e não se implementa a lei”, reagiu Izabella.

“O Código Florestal foi um processo altamente negociado. Você sabe disso, Kátia”, lembrou a ex-ministra do Meio Ambiente. “Você foi uma pessoa que sentou na minha sala e assinou dez compromissos e cumpriu os dez compromissos que você assinou como presidente da CNA e da comissão de agricultura no Senado. Temos que negociar e não passar o trator, nem tão pouco a boiada”, disse.

Foi a tentativa de Izabella de chamar a senadora a se engajar em negociações para agora melhorar o texto do licenciamento. Apelou à capacidade política da colega e a uma lembrança de um momento em que teria sido possível chegar a algum consenso, ainda que muito criticado por todos os lados.

Kátia entrou no jogo, dizendo que considera Izabella e Suely suas professoras na questão e que está disposta a debater. Mas é uma figura ambígua. De “miss motosserra de ouro” – apelido que ganhou quando negociava o Código Florestal –, a senadora, que hoje preside a Comissão de Relações Exteriores, passou a repetir nos últimos anos, sempre que tem chance, que o Brasil não precisa desmatar mais a Amazônia para produzir.

Foi crítica feroz a Ricardo Salles, atuou para recompor os orçamentos do Ibama e do ICMBio neste ano – que ficariam na penúria sem a alteração – e propôs um projeto de lei para antecipar de 2030 para 2025 as metas de redução de emissões de gases de efeito estufa que o Brasil assumiu junto ao Acordo de Paris. À frente da relatoria sobre o licenciamento, porém, é difícil antecipar como ela vai agir.

Além do agro
No webinar, Kátia saiu em defesa da simplificação dos processos para o agro – como era de se esperar – e também da infraestrutura diretamente ligada ao setor, a pavimentação de estradas. Disse que há corrupção no sistema, que falta transparência e que o licenciamento “é uma caixa preta utilizada para gerar dificuldades para vender facilidades”.

Segundo a senadora, há empecilhos especialmente aos pequenos produtores, que precisariam pedir licença mesmo quando estão plantando a mesma coisa, na mesma área, ano após ano. “Eu não vejo justificativa para isso se ele não tem que desmatar ou se ele está com a sua reserva legal e a sua APP (área de preservação permanente) pronta.”

A demanda colocada pela senadora, porém, é a que menos enfrenta resistência por parte dos ambientalistas. Izabella e Suely frisaram que, sim, é possível facilitar o licenciamento do agronegócio. Ambas defendem o que chamam de “não aplicabilidade” do licenciamento para algumas atividades do setor – em vez de simplesmente haver uma dispensa, como aparece no PL.

“Todos concordamos que a lei deve garantir simplificação, racionalização, prazos mais breves para o licenciamento. Ninguém está contra isso. O licenciamento das atividades agropecuárias merece um debate específico, inclusive para fixar, em conjunto com representantes políticos do setor, quais os casos realmente necessitam de licença. O resto entra pela não aplicabilidade”, explicou Suely.

“As atividades do agro já estão sujeitas ao Código Florestal, precisam de autorização de supressão de vegetação, de captação de água. Passam por vários screenings”, acrescentou Izabella à Agência Pública. “Em vez de dispensar a licença, e não vulnerabilizar o instrumento, podemos dizer que não é aplicável. Isso tira o agro da sala, tira do conflito. Temos de parar de brigar com os caras que têm poder, ou vão fazer tudo enviesado”, resumiu.

Tanto ela quanto Suely entendem que a pressão do agro se tornou um “bode na sala” que tira do foco as obras de infraestrutura, estas sim consideradas as que têm maior potencial de causar danos ao meio ambiente se o processo de licenciamento for frouxo.

Adesão e compromisso
O maior nó do projeto ocorre em torno da chamada licença por adesão e compromisso (LAC) que, na visão dos críticos, cria uma espécie de auto-licenciamento, por meio da qual os responsáveis por empreendimentos de “baixo ou médio risco ambiental” simplesmente declaram que cumprirão requisitos pré-estabelecidos pela autoridade licenciadora.

Mas quem vai definir o que é baixo ou médio risco ambiental, na maioria dos casos, serão os Estados e municípios, onde os órgãos ambientais são mais sujeitos a pressões do empreendedor.

É na defesa desse instrumento que entra em ação a analista ambiental Rose Hofmann. Ela acompanha o debate do licenciamento já há vários anos, desde que atuou como consultora legislativa da Câmara. Chegou a trabalhar com Suely no Ibama na área de licenciamento e foi uma das responsáveis pelo arquivamento do projeto de construção de hidrelétricas no rio Tapajós.

Agora, como secretária de Apoio ao Licenciamento do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), vinculado ao Ministério da Economia, participou dos encontros que levaram à elaboração do texto de Neri Geller.

Para ela, não há auto-licenciamento no dispositivo. “A adesão e compromisso não é isso. Na LAC, o empreendedor comunica para o órgão ambiental o que pretende fazer – que é o relatório de caracterização do empreendimento. Se a atividade for conhecida e a área também for conhecida pelo órgão ambiental, ele vai estabelecer regras. O empreendedor vai aderir a essas regras, mas elas são fixadas pelo órgão licenciador”, disse à Agência Pública.

Segundo ela, só vão se encaixar nessa possibilidade os empreendimentos que não são de alto impacto, que tenham impactos previsíveis e controláveis e que não envolvam supressão de vegetação.

Suely vê uma “excrescência jurídica” na proposta. “A LAC é a única forma de licença que não tem entrega de estudo de impacto ambiental. O estudo, em vez de ser feito pelo empreendedor, é feito pelo órgão licenciador previamente para toda aquela categoria de empreendimento”, explica.

“Mas isso deveria ser uma exceção (como já ocorre em alguns Estados), porque o órgão licenciador não vai ter esses estudos para todo o seu território, para todas as tipologias de atividades”, diz. “É uma ficha na internet que o empreendedor vai preencher, e o órgão ambiental nem sequer vai conferir o que está lá. Com isso você elimina o coração do licenciamento ambiental que é a avaliação de impacto”, complementa.

De fala muito rápida, e com forte sotaque paranaense, Rose já havia se antecipado às críticas e disse que a questão está resolvida no texto. “Se os impactos são imprevisíveis, então têm que ser estudados. E se tiver que estudar, não é LAC. Para que seja LAC não pode ser significativo impacto, tem que conhecer os impactos e tem que conhecer as medidas de controle. É só para aquilo que pode ser padronizável.”

Os caminhos para a BR-319
De acordo com o PL, podem ser incluídas como LAC obras de pavimentação em instalações pré existentes ou em faixas de domínio e de servidão. E é aqui onde recai uma das principais preocupações de Suely, Izabella e praticamente todos os críticos do PL: que o asfaltamento da BR-319, no trecho que liga Manaus a Porto Velho, seja autorizado sem o devido controle. A obra foi definida como uma das prioridades do governo federal na área de infraestrutura.

A rodovia, que foi toda asfaltada no período da ditadura, foi se deteriorando e hoje é de chão batido nesse trecho do meio. Na temporada de chuva, a estrada fica intransitável, o que dificulta especialmente o transporte de passageiros e alimentos. Mas por estar em uma área de floresta, teme-se que seu asfaltamento acelere o desmatamento na região – como ocorreu com outras rodovias em outros locais da Amazônia, principalmente no Pará.

Suely entende que o PL abre a chance para que a obra possa ser feita por LAC. Rose jura que isso não vai acontecer.

“Eu adoro essa pergunta, porque é a que eu mais apanho injustamente”, disse à reportagem. “Mas adoro esclarecer. Ela não se enquadra em nenhum dos critérios. Os impactos não são tão previsíveis, então é preciso um estudo de impacto ambiental para saber o alcance deles e as medidas de controle não são conhecidas por caso concreto. Não se enquadra na LAC porque é significativo impacto. E alguma supressão de vegetação vai ter. Ainda que seja uma árvore, se tiver supressão de vegetação também não se aplica à LAC. Não se enquadra em nenhum critério.”

Para Kátia Abreu, porém, com LAC ou sem LAC, não há mais motivo para adiar o asfaltamento da 319. Além dos motivos econômicos, ela se vale de uma teoria curiosa. “Os ambientalistas não têm a menor obrigação de compreender essa tecnicidade. Mas entre uma estrada asfaltada e uma estrada de terra, qual degrada mais? Todos os anos movimentar a terra para consertar uma estrada sem asfalto ou pavimentá-la e fazer a manutenção?”, questiona antes de ela mesma responder.

“É óbvio que a movimentação de terra é muito mais degradante porque tem que movimentar a terra e isso prejudica muito mais. Então eu não consigo entender a lógica de falar que asfalto vai trazer a antropização. Na verdade, do ponto de vista ambiental, uma estrada de terra é muito mais nociva.”

Não é o que revelam as imagens de satélite que captam as famosas “espinhas de peixe” no meio da Amazônia – desmatamentos em linha, para dentro da floresta, realizados a partir de uma estrada principal. Foi assim com a Transamazônica e a BR-163, por exemplo.

Estudo publicado em novembro de 2020 por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais estimou que a pavimentação da BR-319 pode quadruplicar o desmatamento na região nas próximas três décadas. “40 unidades de conservação, 6 milhões de hectares de terras públicas e 50 terras indígenas estariam ameaçadas pelo empreendimento, que abrirá as veias dessa maciça porção de floresta a grileiros”, alerta a equipe liderada por Britaldo Soares-Filho. Talvez, com um empurrãozinho a mais do PL 2633/20, conhecido como PL da Grilagem, que aguarda votação na Câmara.

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