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Biscoito alheio

Na idade da candura, o “morto” não serve nem para sombra

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Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto Reprodução

Comediante e ator, o americano George Burns morreu aos 100 anos. Ainda estou muito longe disso, mas, como espiritualista convicto, faço minha uma das mais célebres frases do parceiro de orgias fictícias: “O sexo é uma das nove razões pelas quais eu gostaria de reencarnar. As outras oito são irrelevantes”. Posso não ser tão pidão como Burns, mas, na minha idade, as flores e velas também assustam. Por isso, adoro cantar e beber uísque. Não entendo, mas a maioria dos amigos sempre preferiu me ouvir bebendo uísque. Deixa pra lá. Enquanto aguardo uma demanda de paternidade, vou tentando não esquecer os nomes e rostos da turma dos almoços de sextas-feiras. Por falar em esquecimento, fujo de banheiros públicos como o diabo da cruz. A causa é simples: quando não esqueço de puxar a braguilha, esqueço de baixá-la.

É triste, mas é verdade. E ainda me dizem que envelhecer é nobre. Tudo bem que acompanhei a gripe, a pneumonia e o engasgo do Mar Morto. E daí? Queria vê-lo reencarnar. Por enquanto, o recolhimento obrigatório decorrente da Covid despertou em mim uma compulsória, embora precoce, inapetência carnavalesca. Aliás, sem margem de erro para cima, para baixo ou para os lados, a anedonia e o fastio são generalizados. Já fazem parte do meu show. Apesar do pouco apetite para a libidinagem, felizmente a falta daquilo ainda não me causou problemas de memória. Tenho boas lembranças dos tempos em que a árvore dava frutos longos, robustos e endurecidos. Hoje, só faz sombra. Mas só nos dias de verão. O inverno é uma época de hibernação profunda. Não lamento a fase.

Reclamo apenas quando ligo para clínicas de disfunção erétil e a telefonista me atende perguntando: “Quem falha?” É um problema sempre parecer íntimo das pessoas onde chego. Dia desses, ao comprar um caderno grosso para anotar, sem perder a conta, os dias dos variados medicamentos receitados pelo urologista, a balconista, sem esconder o sarcasmo, me indicou um de 100 folhas. Indicação aceita, a mocinha achou por bem indagar se era espiral ou brochura. Claro que reclamei à gerência. Foi pior. Nunca mais voltei à loja. Sacanagem com quem perdeu o ânimo, mas não a fé. Sem direito à réplica, na semana anterior ao Carnaval, fui repreendido por um amigo que não se sentiu representado em um texto de minha autoria sobre a inexorável passagem do tempo. Entendi sua preocupação, pois também é a minha.

Perplexo com o cidadão sem pescoço que nasceu comigo, mas morreu antes, decidi parar de escutar o que as pessoas dizem a respeito do envelhecimento. Afinal, o corpo envelhece sem a nossa permissão, mas a alma, ao contrário, só envelhece se a gente permitir. Por isso, mesmo esquecendo do futuro, asseguro que estou tentando recuperar o entusiasmo. Enquanto ele (o entusiasmo) não vem, mesmo contra a vontade, tenho urinado sistematicamente no sapato. Além de incomodar minha condição de macho alfa consistente e atuante, o atual estágio de despotenciamento libidinoso me faz crer que inexoravelmente alcancei a fase da vida em que as respostas viram histórias. Dizer que saber envelhecer é a obra-prima da sabedoria é a forma poética de afirmar que nosotros paramos de “brincar” porque envelhecemos.

Sem eufemismos, a frase tem de ser dita de forma inversa: envelhecemos porque paramos de “brincar”. Enfim, não tenho medo de envelhecer, pois vou continuar fazendo merda. Só que mais devagar. O que sei é que jamais abandonarei as expressões de minha infância. Adaptei algumas para a terceira idade, embora não tenha alterado a essência de nenhuma delas. Definição de cachaça, chifre e “pobrema”, a cachibrema é uma delas. Uma outra é o vuco vuco sem tuc tuc, isto é, aquilo que nunca chega naquilo. Como madeira que apanhou muita chuva e, por conta disso, não acende mais, sou obrigado a reconhecer que desaprendi tudo que li nos quadrinhos eróticos do Carlos Zéfiro e nas revistas O Cruzeiro e Sétimo Céu. Paciência se nem para fazer sombra o morto serve mais.

Brasileiro que não desiste nunca, decidi aderir à tese popular dos imbrocháveis, cujo ditado aplicado nas filas do INSS e nas melhores casas de saliência é revelador: pior do que fazer uso dos comprimidinhos azulados é chegar às vias de fato com o biscoito alheio. Convicto de que o demônio é uma cobra que pica o próprio rabo, faz décadas assumi como meu um pensamento filosófico de um autor desconhecido: fico com quem me despe a alma, porque a roupa qualquer uma sabe tirar. Desdizendo tudo que disse, posso estar longe do perfil de oito gols por hora. No entanto, apesar do bamboleamento do consolador, acerto a trave pelo menos uma vez a cada oito horas. Defensor da honra e dos bons costumes, envelheci, mas borocoxô só na próxima encarnação. Em verdade, de boba eu só tenho a mão. Além disso, na minha idade, não abro mão de duas coisas: namorar à exaustão e atingir a exaustão sem conseguir namorar.

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