Encontro com o indesejado
Na lápide, a frase realista (enfim, seu destino)
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Madrugada fria e chuvosa. Eram apenas eu e o motorista do aplicativo singrando aquelas ruas, indo em direção à capela mortuária, bem ao lado do cemitério, aonde velavam o corpo de meu mais querido amigo. Compromissos profissionais inadiáveis me levariam a viajar logo de manhã, mas por poucas horas queria estar perto, não só daquele que se fora, mas de sua família e de outros amigos para os quais a perda deixava uma lacuna definitiva. O rádio do carro, sintonizado numa estação de notícias, falava sobre coisas políticas que, naquele momento, pareciam absolutamente sem importância, embora houvessem ocupado gravemente as atenções de meu amigo nos dias derradeiros de sua existência. A situação do país o consumia. O cargo que ocupava exigia-lhe esforços violentos para controlar certas circunstâncias, e isso o afastava do convívio com os seus.
Dias antes, num encontro ao acaso, no aeroporto, ele se queixara comigo. Queria dedicar mais tempo à esposa e às filhas. Permitir-se atividades prazerosas, entregar-se ao descanso, direito de todo aquele que tão fielmente cumpria suas atividades profissionais, mas tudo ele colocava antes de si mesmo e de suas necessidades. Somente o trabalho, somente a causa pública, somente os interesses de Estado. Assim, distanciava-se da família, dos amigos e, com os poucos que ainda encontrava, número no qual eu estava incluído, confessava sua desesperança com o Brasil.
Eu vinha no carro trocando mensagens com outro amigo, já presente ao velório, e ele me informava que, na capela mortuária, apenas um pequeno grupo de familiares, incluindo a viúva e a filha mais velha, bem como seis outros amigos comuns, aguardavam o dia raiar e a hora do sepultamento, marcado para as 9 horas. A longa vigília da madrugada impunha-se para aguardar a viagem de um irmão do falecido o qual, ocupando posto militar em distante estado brasileiro, só poderia chegar pela manhã.
A descrição propiciava-me imaginar o quadro que, muito brevemente, estaria diante de mim. Um velório com poucas pessoas é sempre pior. Mais triste, mais melancólico. Parece que esse evento tão triste põe à prova os que, verdadeiramente, ligam-se ao morto ou aos mais próximos sobreviventes. O velório, em toda sua duração, é uma via-sacra, cujo ápice se desenrola no drama do sepultamento ao qual costumam acorrer muito mais pessoas, pois trata-se de um evento mais visível. Poucos conseguem acompanhar, no interior da capela mortuária, a longa noite em claro onde, cercados pelo cheiro tão presente de cravos e rosas, os círios vão se desfazendo na posição de sentinelas em volta de um ataúde de madeira escura, dentro do qual o outrora vivo vai se distanciando cada vez mais do nosso mundo e preparando-se para o sono em que submergiu e permanecerá profundamente.
Durante o caminho, pensava na existência que se findava. Um homem bom, que conheci ainda na flor da juventude, juntos cursamos a faculdade e, desde cedo, nós traçávamos planos mirabolantes sobre o futuro, embora, em meu íntimo, as aspirações fossem bem mais modestas. Já ele alcançara bem mais do que havíamos sonhado. Íamos chegando à maturidade e, confesso, sentia uma envergonhada inveja das realizações de meu amigo. Agora, diante do duro quadro da morte, a inveja virava um arrependimento dolorido. Sentia-me o mais vil dos homens, e nada me consolava.
Mesmo em posição mais modesta na vida, não podia me queixar. Era reconhecido na minha profissão, a toda hora solicitado para importantes e destacadas tarefas nas quais ganhava visibilidade.
Com meu amigo, no entanto, era diferente. Sua autoridade, desenvolvida nos cargos de expressão que ocupara no governo, impunha-se naturalmente. Repórteres e analistas políticos vinham ter com ele para ficarem a par de assuntos decisivos, seu nome saía nos jornais e ele aparecia na TV quase diariamente. Mas, mesmo revestido de sua importância, mesmo que sobre seus ombros desabassem, com a maturidade, o peso de tanto poder e responsabilidade, seus olhos, os mesmos vistos por mim dias antes de sua morte, ainda brilhantes, ainda vívidos, ainda inquietos, não deixavam de ser os daquele menino que sonhava, que vivia de forma leve, até mesmo um pouco irresponsável, e conservavam o mesmo frescor do amor pela vida.
Chegávamos ao ponto do nunca mais. Nunca mais sua amizade, nunca mais sua presença forte, seu sábios conselhos. Meu coração estava apertado. A inveja que sentira consumia-me por dentro e não adiantava querer seu perdão. A morte o calara, toda a compreensão que pudesse ter por mim tornava-se, agora, impossível.
Já não chovia quando o carro do aplicativo parou a 5 metros de distância da entrada da capela mortuária, em volta da qual percebi um carro descaracterizado da polícia e outro que devia pertencer à reportagem de algum jornal. Imaginei que as autoridades tivessem se preocupado em garantir a segurança daquela longa vigília, protegendo os presentes dos perigos noturnos da cidade. Munido de uma mala que havia preparado para minha viagem de dali a algumas horas, fui até o interior do edifício e, após os cumprimentos de praxe, das palavras normalmente pronunciadas nesses eventos, debrucei-me, sobre uma das janelas do local, que dava para o grande cemitério, e acendi um cigarro, contrariando a advertência contida numa plaqueta na parede.
A madrugada começava a se findar, e o azul profundo do céu, confundido por pesadas nuvens, era desafiado pelos primeiros traços do dia.
Observando aqueles túmulos, uma sucessão quase infindável de monumentos à morte, memoriais de pessoas idas, várias das quais experimentaram o drama completo da vida muito antes que eu nascesse, fiquei refletindo sobre todos os sentimentos experimentados desde que soubera da morte de meu grande e inigualável amigo. Ela servia-me de advertência. A vida não é nada sem o proveito que possamos ter nela. As verdadeiras conquistas são as do coração. O amor, as amizades, as experiências, o bem que se fez em vida. E, no entanto, colocamos acima disso tantos objetivos. Por vezes, parecermos querer controlar o tempo como se a areia da ampulheta não estivesse escapando por nossas mãos. Passamos longos anos numa verdadeira batalha por conquistas que, supostamente, seriam a coroação de nossas vidas e, no final, corremos o risco de, amargamente, descobrir que a própria vida foi perdida nessa batalha, e mesmo o objetivo atingido pode não representar mais nada se colocado em perspectiva do que tem verdadeira importância.
Meu amigo morto e eu, depois dos devaneios da juventude, fomos desigualados pela vida. Eu, agora, estava em condição superior, porque vivia. Mas, um dia, nos igualaríamos na morte. E essa igualdade seria perpétua… Definitiva.
Ele seria uma memória, mas eu estava ali: senhor de minhas iniciativas dali por diante, consciente disso como nunca. Foi na chegada ao velório que me senti, de certa maneira, absolvido da minha inveja e aliviado do remorso por ela provocado. É porque, no momento em que o carro do aplicativo parou, a suave voz que orienta a navegação pelo mapa do GPS lembrou-me de algo sobre que venho refletindo até hoje. A frase, dita em frente à capela mortuária, de onde já se divisavam as coroas de flores, os seres enlutados e, pouco além, o muro gradeado do cemitério deixando entrever as quadras mais nobres com seus imponentes jazigos, foi simples. Mas provocativa.
“Você chegou ao seu destino.”
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Daniel Marchi é autor de A Verdade nos Seres, livro de poemas que pode ser adquirido diretamente através do e-mail danielmarchiadv@gmail.com
