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Ato de caridade

Na matinê para sexagenários até a libidinagem é fantasia

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Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto Reprodução/Depositphotos

Noite alta na perfunctória, perfumada, aprazível e ecumênica casa de facilidade montada por madame Flor do Cerrado, o silêncio notúrnico era quebrado por alguns longos, libidinosos, lascivos e voluptosos sussurros. Nada parecido com a Love Story paulista, com a Help ou a Barbarela carioca ou com a Queens brasiliense, mas a luxúria do local remetia a um sítio de múltiplas funções, inclusive aquela para a qual ainda não é permitida a presença de menores de 12 anos. Uma placa afixada no quadro de plantões informa que os senhores com idade superior a 60 anos precisam mostrar atestados médicos de capacidade física e de procedimento recente de circuncisão.

Afamada na região e no tipo de empreendimento, a jovem senhora empresária sempre ganhou dinheiro explorando o negócio dos outros. Conhecidos, desconhecidos, endinheirados, assalariados e, principalmente, os políticos, que também vivem às custas do povo, formam a chamada lista preferencial da igreja universal da madame. A casa é um verdadeiro templo do prazer. Nela vale de tudo e todos se entendem. A diferença para aquela outra igreja é que o dízimo tem de ser pago em espécie. No máximo via QR Code. Não são aceitos automóveis, escrituras de imóveis, joias, tampouco anéis físicos ou simbólicos já usados.

Antiga funcionária do Centro de Recuperação dos Homens Mal-Amados, nome fantasia da empresa, Maria Santa é a empregada mais antiga de madame Flor do Cerrado. Séria, daquelas que amam sem rir, Santinha trata a todos com a mesma distinção. O que ela não admite são as brincadeiras do tipo “posso introduzir meu PIX no seu QR Code?” Aí também é demais. Nem as paroquianas da Vila Mimosa, centro do amor livre no Rio de Janeiro, aceitam tal disparate. É claro que Maria Santa não é nome de batismo. Não estou autorizado, mas a pureza de seu nome me obriga a decliná-lo: Cândida Privada de Jesus.

Aliás, Santinha não é a única a se utilizar de pseudônimos na labuta administrativa diária na casa de facilidades. Há alguns muito estranhos. Outros são diferentes. Conforme meu caderninho de anotações, curiosamente as servidoras da cozinha com as alcunhas mais engraçadas são as mais procuradas. Por exemplo, Navasca Barbuda é a que mais recebe debêntures no fim do dia. Na sequência, também faturam alto Deusarina Botão Fechado, Primorosa da Pelúcia Rasgada, Veneza Pernambucana do Paranoá, Dolores do Ventre Inchado, Maria Você Me Mata, Sentada com a Cara na Parede e Nauseabunda Fora do Armário.

Antes que confundam, a madame bordelista nada tem a ver com aquela senhora ex-evangélica militante e ex-deputada federal presa por assassinato do marido. O que as une é que Flor do Cerrado já tem o futuro traçado. Depois do pé e daquilo de meia, ela quer seguir o mesmo caminho de uma dona de bordel que se tornou a beata mais linha dura de Serra Talhada, no interior de Pernambuco. Contam que, na década de 50, Maria Cordeiro decidiu abandonar a vida de prostituição e de aliciamento de meninas depois de ouvir a pregação de Frei Damião, homem quase santo que, à época, viajava pelo sertão do Pajeú.

Já beata, dona Maria Cordeiro renunciou ao dinheiro que acumulou funhanhando com ricos fazendeiros da região, dos pertences e da casa em que morava e passou a viver exclusivamente para a caridade. Flor do Cerrado ainda está longe. Entretanto, preocupada com a performance dos velhinhos, ela passou a fazer preços de matinê para os sexagenários, notadamente para os que veem o sexo somente como fantasia. Em outras palavras, a promoção atinge somente os genários. É ou não é sem noção o sujeito que não vê nesse gesto um ato de caridade? Eu não provo, mas dizem as más línguas que o frei que tocou as entranhas de Flor do Cerrado foi Serapião, o Grande.

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