Bonifrate
Na trupe, alegre, e João dorme sob o efeito de temperos estranhos
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emNo palco improvisado não precisava ser bonita. Sua voz e seu repente tinham brilho e importavam. Ao som dos instrumentos nordestinos lançava o desafio e começava a encenação:
“Bora fazer repente
para vida animar
Venha brincar comigo!
Cantoria! Vamos rimar!”
O improviso enchia o ar. Sempre havia alguém pronto para criar versos que ela devia responder com humor e ironia.
“Eu vou entrar no passo
Ô mulher nordestina
Toco a concertina
A viola e violão
Não erre o compasso
Tu toca na percussão”
Ela logo respondia:
“Tu é abestalhado
Quer me vencer na rima
Tu não é delegado
Verso desde menina
Te chamo de coitado
Esta é a tua sina”
Risos desdentados, palmas abafadas por calos e gritos de inexplicável alegria. Como conseguiam gritar naquela secura? Essa era a diversão! Depois vinham as moedas, as notas amassadas. Quanto mais rimavam, mais o dinheiro aparecia. Era assim que se sustentavam: com repentes e cantoria.
Bonifrate se empenhava ao máximo e sempre saía vencedora.
O prêmio era sentir-se livre, mulher e sua própria patroa.
Bonifrate. Nome diferente, esquisito. Feio mesmo! O Boni sabia de onde vinha. Bonifácia era como se chamava a avó paterna. Mas o frate, não entendia. Sabe-se lá por que o pai colocou.
Questão de rima não foi, pois ele odiava dança, cantoria e poesia. Seus olhos e ouvidos estavam entupidos com a poeira da lida e era da opinião que essas coisas não tinham serventia, pois não matavam a fome.
Sua mãe nada dizia, era feita de pernas, braços, vagina e barriga para emprenhar. Se tinha boca, não fazia uso. No rosto trincado pelo sol, somente chamava a atenção o olhar faminto, quase sempre voltado pro chão.
Tudo era seco naquele pedaço de terra. O chão, os bichos, as falas, as panelas e o afeto. Era ali que Bonifrate crescia, atrás de seus cinco irmãos. Menina danada, às vezes retrucava, uma vez até quis dizer não. Por ser desse jeito cheio de defeito apanhava da mãe, da vida, do pai e dos irmãos. De tanto apanhar, quase entendeu seu destino: servir, calar, obedecer, embrutecer e parir até morrer.
Mas, como seu nome, Bonifrate também era diferente. Tirava água não sei de onde e regava as sementes de seus sonhos. Divagava muito, aspirava uma vida diversa daquela. Queria ser alguma coisa e essa vontade a fazia cantar quando ninguém ouvia.
A situação mudou com a chegada de João Sem Dono. Um homem de idade indefinida, mal cheiroso, olhos de azougue, cabelo ralo grudado na testa pela força da brilhantina. Mascate da miséria. Sua casa era uma carroça multiuso. Com ela, percorria aquele sertão de fome vendendo suas mercadorias, na maioria das vezes, na base do escambo.
No início, viver sozinho satisfazia sua avareza. Não tinha que dividir nada com ninguém. Entretanto, a idade chegava e viu que precisava de alguém para arrumar suas tralhas, fazer comida, lavar suas roupas e satisfazer suas taras sem ter que pagar. Essa ideia o consumia e foi assim matutando que chegou nas terras do pai de Bonifrate. Pôs os olhos sangrentos na menina e disse pra si: “É ela!”
Nunca negociou uma mercadoria tão rápido. Comida de um lado e menina do outro, nem aperto de mão, nem explicação, nem despedida. Bonifrate se foi — ainda não havia brotado a semente do não.
Calada subiu na carroça. Manteve a cabeça baixa. A testa ardia não só pelo sol impiedoso, mas pelo turbilhão de pensamentos que bailavam em sua mente. Quem era aquele homem, o que ele queria, para onde a estava levando? Será que era bom? Parece ter visto em seu rosto um riso no canto da boca.
Suas indagações se misturaram quando o cavalo chicoteado começou a se deslocar. Bonifrate olhou de soslaio para a mãe e, como sempre, não encontrou seu olhar. Mirava a secura do chão. Um irmão ergueu a mão. Só ergueu, não esboçou nenhum movimento. O pai permaneceu escondido embaixo do chapéu. Foi essa imagem que ela engavetou na memória com o significado de família.
A viagem seguia conforme se estendia a estrada. Nem uma palavra. Apenas iam despertando o sertão com o chacoalhar das mercadorias. Bonifrate começou a ficar alegrinha. Achava que poderia ser só isso: viajar com João Sem Dono por esse mundo de meu Deus!
Ao longe enxergou um casebre e sentiu diminuir o trote do animal até o parar da carroça. João Sem Dono desceu, revirou suas mercadorias, pegou algumas, foi até a casa e voltou com uma galinha que cacarejava desesperada, amarrada pelos pés. Entregou-a para Bonifrate. Subiu na carroça e seguiram a viagem de silêncio. A não ser pela galinha que parecia entender o seu destino, o contrário da mocinha.
O homem encontrou uma sombra, parou a carroça, fez um movimento com a cabeça e Bonifrate entendeu que deveria preparar a comida. Silêncio novamente, agora sem o som da ave que sem as penas mostrou-se bem magra, mas servia.
A menina sentia-se feliz. Fazia tempo que não enchia a barriga. Nossa! Como era boa aquela sensação. Descansaram, cada qual em seu canto. Logo anoiteceria e ela aprenderia uma nova lição.
Foi sem carinho, com a secura do Nordeste. O que era aquilo? O que fazer? Pra onde correr? O não, como se dizia? Gritar! Pra quem? Desespero. Violação. Dor! Asco! Horror… Horror.
A partir daquele instante começou a ter medo da noite e do que ela trazia. Era horrível, nojento, tenebroso e sempre se repetia. Passou a ter ódio do nascer do dia. Depois veio a raiva de si. A culpa por manter-se viva.
Esqueceu das canções inventadas, perdeu o fio da rima. Queria fugir daquele homem. Mas como? Era uma prisioneira sem correntes, sua sentença era o medo da fome. Não conhecia ninguém, achava que pra ela não havia saída.
O tempo passava do mesmo jeito que a estrada e pouca coisa mudava. Até que, em suas andanças com o mascate, chegou num vilarejo. Ao longe já se ouvia a cantoria. O coração da mulher-menina acelerou. Assuntou. Conforme se aproximavam, percebia o teor das rimas e em sua cabeça respondia. Na secura dos olhos, algo brilhou.
João Sem Dono apeou e começou a selecionar os produtos, preparando a exposição para atrair compradores. Nem notou que ela desceu junto. Bonifrate se aproximou de um povo que assistia os cantadores avermelhados de barro que no centro da roda tocavam instrumentos e lançavam no ar quente o refrigério da poesia.
Bonifrate descobriu onde a trupe ficava, como se locomovia e, o principal, que naquela noite seria a última apresentação. Teria que ser rápida.
Discretamente, juntou suas poucas coisas, acrescentou dois cortes de tecido pelos serviços prestados e conseguiu surrupiar de João umas poucas moedinhas, um naco de carne seca e uns caroços de farinha, além de um cantil. Já servia. Deixou tudo escondido num canto da carroça, perto de onde dormia.
O velho não notou seus movimentos, satisfeito que estava com as negociações que fazia, o movimento ali era bom. Bonifrate, em contrapartida, traçava seu plano que começou com uma boa comida. Queria o velho de barriga cheia, para que se entregasse completamente ao relaxamento do sono.
Era a primeira vez que não sentia raiva do cair da noite. Cerrou os dentes e cumpriu com todos os rituais exigidos pelo homem. Nem se importou com o asco, nem com a dor, nem com o horror. Logo ouviu o seu ronco de porco satisfeito e ao longe o cessar dos ruídos vindos da roda de cantoria.
Pronto! Pegou sua tralha e no lugar que dormia, colocou um monte de panos. Desceu da carroça sem fazer barulho, correu pelas sombras e se escondeu numa das carroças da trupe, rezando para que eles não a descobrissem e saíssem bem cedo.
Deus lhe atendeu. Quando pararam já era noite, e a caroneira saiu de seu esconderijo. Apesar do alvoroço que causou, conseguiu contar a sua história e os artistas se apiedaram da sua sorte.
Em torno de Bonifrate formou-se uma roda de curioso acolhimento. A menina, mais segura, revelou seu talento, mostrou um pouco de sua rima e o grupo decidiu que ela faria parte da próxima apresentação, se fizesse sucesso, seguiria com eles, caso contrário, teria que se virar sozinha.
Deu muito certo, o público vibrava com os repentes dela. Bonifrate finalmente construía para si o sentido da palavra LIBERDADE. Podia regar e fazer germinar as suas sementes de sonhos.
E o João sem Dono? Ainda dormia… Que tempero terá sido aquele que a menina colocou naquela comida?
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Instagram da autora: @joseaniv