O silêncio, a sombra e o reflexo são companhias. Vultos ébrios, damas da noite encerram seus compromissos.
Jogados perdidos em cantos ou escancarados, a velha boemia deixa para trás mais uma composição e mesas vazias.
O cântico abafado da água corrente oferece linha de fuga emparedada entre a calçada e o meio-fio. Embalam o sono da madrugada e recebe a urina dos encervejados que foge recortado na sensação de ser levado, lavado, empurrado, ladeira abaixo. Sua força é esmaecida diante da resistência que encontra pela frente. Retida em ponto mais alargados. Corre tímida por brechas encontradas. Rumo ao bueiro. Nele desaparece.
É o último murmúrio deixado pela chuva antes do nascente.
Olhar para trás, percebe que secou.
É hora do fogo que chega ventado, empurrando nuvens, abrindo sendas com seus raios e calor. O sol!
Seu prenúncio desperta aves, desabrocha flores, seca as folhas livrando-as do orvalho. Inimigo número um dos boêmios, vampiros e amantes.
Luz que levanta o oposto. Marca os artistas nos seus rostos – olheiras visíveis e sono previsível a dominá-los até que de novo escureça.
Sol das riquezas, fartura, produção. O galo canta avisando a terra, levantando enxadas para semeio e colheita.
Sol que enche as ruas de gente, no vai e vem frenético em meio a trânsito caótico, obediente ao horário do ponto. Chamada civilização.
Sol – realista responsável pelo abandono da inspiração. Discutir a diferença – sem comparação.
E o ciclo faz descansar o dia e voltar a noite – berço da boemia.
Assim.
É nas trevas, no escuro que o lado negro da alma – bandidos, assassinos, cafetões e suas musas e músicos, atores e poetas; artistas no seu cada qual, juntos sem identidade, conseguem se revelar.
E mesmo em noite seca, o ritual se repete.
Os bares cheios, as mesas movimentadas, ganham novas rodadas geladas; marcadas por ritmo batido em garrafas, copos ou mesmo na palma da mão. Surge um samba dos bons.
As pernas expostas, os lábios voluptuosos, o requebro das ancas ou um pequeno copo da branquinha para melhorar a inspiração.
E em bancos altos junto ao balcão sempre existe um alguém a beber a solidão. Lágrimas de beberrões.
E no meio de toda essa desordem e luxúria, entre luz fraca e noite adentro é que a vida se faz – preparando um novo tempo, passatempo ou outra dimensão.
Que venha o sol cada vez mais dominado, para que a noite mostre o seu poder de estrela no palco – mesmo apagado.
Não importando a urina despejada em um banheiro sujo ou calçada onde a marca da noitada se imortaliza fétida no chão.