Os seguidores de Hitler estão ganhando espaço. Lutam em busca da supremacia branca. E se nos últimos anos o extremismo islâmico foi considerado a principal ameaça à segurança no mundo, o quadro mudou. O islamismo radical deixa de ser a maior preocupação de governos e da imprensa. É que a violência do tipo envolvendo outros atores cresceu e está disparando alguns alarmes quase esquecidos nos departamentos de segurança: trata-se do extremismo de extrema direita.
No início de outubro, quando o FBI (polícia federal americana) deteve um grupo de homens ligados a milícias de extrema direita que planejavam sequestrar a senadora Gretchen Whitmer, muitos se perguntaram se não havia se subestimado a ameaça desses grupos.
Poucos dias depois, um relatório do Agência de Segurança Nacional dos EUA tratou do tema. “Como secretário, estou preocupado com qualquer forma de extremismo violento (…), no entanto, estou particularmente preocupado com grupos extremistas violentos de supremacistas brancos que têm sido excepcionalmente letais em seus ataques abomináveis”, afirmou Chad Wolf, secretário interino da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos.
Os dados apresentados no documento são contundentes: quase 70% dos atentados e conspirações que o país sofreu nos primeiros oito meses do ano se enquadram na “supremacia branca”, categoria enquadrada na extrema direita. Nestes ataques morreram 39 pessoas.
E a Agência de Segurança Nacional emitiu um alerta: esse extremismo de “supremacia branca” continuará sendo “a ameaça mais persistente e mortal no país” daqui em diante.
Preocupação global
A preocupação com o assunto não fica restrita aos Estados Unidos. O chefe dos serviços britânicos de inteligência reconheceu nos últimos dias que esse tipo de violência é uma das “maiores ameaças” que o país enfrenta.
O ministro do Interior alemão, Horst Seehofer, subiu um degrau a mais, já que o governo dele teve até mesmo que dissolver uma unidade de elite do exército devido a seus laços com grupos neonazistas em meio a conspirações para criar um grupo terrorista dentro das forças armadas. “É a maior ameaça para nós”, disse ele.
E o próprio Comitê Antiterrorismo da ONU foi recentemente obrigado a emitir um alerta contra a “crescente ameaça transnacional do terrorismo de extrema direita”.
Assim, os diferentes alertas marcam uma tendência: nos últimos cinco anos, os ataques extremistas rotulados de extrema-direita cresceram 320% em todo o mundo, segundo o Índice Global de Terrorismo, um dos indicadores de referência desta reportagem e que deu origem ao Instituto de Economia e Paz (IEP).
Uma ameaça que se concentra principalmente nos Estados Unidos, Europa e Oceania.
Se em 2010 esse tipo de terrorismo parecia adormecido, com apenas cinco ataques registrados pela agência, quase uma década depois esse número subiu para 58 ataques por ano, com 77 mortos.
No final da década, houve ainda mais ataques extremistas no Ocidente inspirados pela extrema direita do que pelo extremismo jihadista (17,2% contra 6,8%, respectivamente), de acordo com o relatório.
“Temos um problema e sua tendência é crescente”, alerta Cristina Ariza, coordenadora do assunto no Observatório Internacional de Estudos sobre Terrorismo (OIET) e analista do Instituto Tony Blair de Mudança Global.
Por que está aumentando?
Na história recente, o extremismo com motivação política atingiu o pico na década de 1970 (com quase 1.700 ataques no período), diminuindo abruptamente e quase desaparecendo nos 30 anos seguintes, de acordo com o instituto IEP, que lista separadamente os extremismos separatista e religioso.
Praticamente só voltou às primeiras páginas dos jornais com duas exceções específicas e particularmente sangrentas: os atentados ligados à extrema direita na cidade italiana de Bolonha (85 mortos), em 1980, e na cidade americana de Oklahoma, em 1995, com 168 mortos.
Nos 16 anos seguintes a este último, o instituto estima que a extrema direita se envolveu em média em apenas 6,5 ocorrências por ano.
Mas algo mudou em 22 de julho de 2011, quando o norueguês de extrema direita Anders Breivik detonou uma bomba na frente a um prédio oficial em Oslo e, em seguida, entrou em um acampamento de jovens do Partido Trabalhista para provocar um massacre. Breivik matou 77 pessoas.
Ataques ligados à ideologia de extrema direita se intensificaram desde então: Christchurch (Nova Zelândia, 2019), 51 mortos; El Paso (EUA, 2020), 22 mortos; Hanau (Alemanha, 2020), 9 mortos; Pittsburgh (EUA, 2018), 11 mortos.
A tendência é clara para os especialistas e leva à pergunta: por que agora? O que aconteceu para reativar esse tipo de extremismo?
“Não há uma resposta única”, explica Ariza à BBC News Mundo. As respostas estão escondidas na própria variedade de motivações e lugares por trás desses ataques.
“Os anos de crise econômica (depois da grande recessão de 2008) e os próprios processos políticos resultantes que impulsionaram formações políticas radicais de direita, uma reação à virulência do terrorismo jihadista destes anos, o sentimento de alguns setores contra as ondas migratórias… As razões são diversas”, afirma.
“É preciso entender que o chamado terrorismo de extrema direita e os movimentos próximos dessa ideologia, violentos ou não, são muito heterogêneos e, portanto, (também o são) os motivos de sua exaltação, embora compartilhem um núcleo comum. Não é um terrorismo perfeitamente organizado e hierárquico. Eles agem sozinhos em muitas ocasiões”, diz.
Mais especificamente, 60% dos ataques desse tipo de extremismo são feitos por pessoas que não pertencem a nenhum grupo, segundo dados do Instituto de Economia e Paz.
“É preciso entender que os grupos de extrema direita não se limitam mais apenas aos clássicos neonazistas, que admiram Hitler e defendem a supremacia branca ou o antissemitismo, mas que surgiram novos aspectos que se conectam com os novos populismos”, alerta a pesquisadora.
“Essas correntes focam seus objetivos no que chamam de batalha cultural, e entre suas obsessões querem acabar com o multiculturalismo, impedir a chegada de migrantes, expulsar muçulmanos, acabar com as elites liberais, entre outras”.
“Esses grupos são muito ativos nas redes sociais e fóruns de supremacia na internet”, acrescenta Ariza. “Lá eles encontram um terreno ideal para explorar seu discurso, atrair seguidores e promover todos os tipos de discursos conspiratórios.”
E há poucos momentos mais propícios para alimentar conspirações do que uma epidemia global: a crise da covid-19 tornou-se um elemento decisivo para agravar ainda mais sua virulência.
Covid e a extrema direita
O Comitê Antiterrorismo da ONU emitiu recentemente um alerta sobre a disseminação massiva de mensagens conspiratórias da extrema direita que estão servindo para planejar e executar ações violentas.
Há um número significativo: em apenas três meses, um total de 34 portais conspiratórios sobre a covid-19 alcançou 80 milhões de interações no Facebook, segundo o relatório de alerta da ONU. Enquanto isso, a Organização Mundial da Saúde, uma fonte de informações oficiais e verdadeiras, obteve apenas 6,2 milhões.
As mensagens são variadas. Querem semear a ideia de que a covid-19 é uma ferramenta para conseguir a “grande substituição”. Ou seja, eliminar a população branca. Alertam para as infraestruturas 5G como veículos de transmissão, que é um plano para afundar a economia, que se enviam imigrantes infectados para espalhar o vírus e chegam a associá-lo a poderes ligados ao setor da saúde.
E essas mensagens estão tendo um desdobramento concreto, alerta a ONU.
Alguns desses grupos seguem uma tática que chamam de “aceleracionista”, que busca aproveitar a crise atual para semear o caos e derrubar o sistema.
O relatório adverte que essas estratégias estão tendo sucesso e aumentando a probabilidade de que mais “indivíduos se comprometam em dar o passo da violência”.
Planos concretos já foram localizados, como “um complô terrorista de extrema direita” que pretendia explodir um hospital para pacientes com covid-19 no Missouri (EUA) e que o FBI conseguiu desmantelar.
Difícil de perseguir
Quando, na noite de 17 de junho de 2015, Dylann Roof (um homem branco de 21 anos) abriu fogo usando um fuzil e matou nove fiéis de uma congregação da Igreja Metodista Africana em Charleston, Carolina do Sul, EUA, muitos não entenderam o motivo de ter sido classificado como crime de ódio e não terrorismo.
Samuel Sinyangwe, um conhecido ativista afro-americano, escreveu naquela noite na conta dele no Twitter: “O terrorista que atirou usava uma bandeira do Apartheid em sua jaqueta. Se um muçulmano estivesse usando uma bandeira do Isis (Estado Islâmico), não passaria nem mesmo em um posto de controle de segurança de um centro comercial”.
O próprio Nate Snyder, um dos assessores antiterrorismo do governo Barack Obama, lamentou a decisão: “Se alguma vez houve uma oportunidade de definir extremistas brancos como terroristas domésticos, foi essa, de Dylan Roof”, disse ele ao jornal The New York Times.
E esse caráter descentralizado, a falta de hierarquias e o fato de serem perpetradores solitários dificulta o combate contra eles, alertam vários especialistas.
O extremismo dessa vertente contabiliza 746 ataques e 688 mortes desde 1970, de acordo com o IEP, mas muitos especialistas alertam que o número de atos violentos e vítimas pode ser muito maior.
A da extrema direita “é uma forma única de violência política com fronteiras líquidas entre o crime de ódio e o terrorismo organizado”, analisa Daniel Koehler, diretor do Instituto Alemão da Radicalização e Desradicalização.
Isso causa disfunções na hora de perpetradores serem processados legalmente por esses crimes e aparecer nas estatísticas como tal.
“Em muitos países ocidentais, a violência da (extrema) direita foi analisada sob a rubrica de crimes de ódio”, e os criminosos “são frequentemente processados por vários crimes (ódio, assassinato, posse de armas) e não por terrorismo” simplesmente porque é “mais difícil, e requer mais recursos, provar em um tribunal a acusação de formação de organização terrorista ou de participação em tentativa de terrorismo, em comparação com os requisitos exigidos para os outros crimes”, disse Koehler em uma pesquisa para o Centro Internacional de Contraterrorismo de Haia.
Assim, explica Koehler, só na Alemanha o número de vítimas poderia dobrar: aparecem apenas 83 vítimas oficiais do terrorismo de extrema direita desde 1990, quando a contagem que poderia caber para esse tipo de atividade é de 169, segundo várias análises acadêmicas.
E de acordo com suas estimativas de relatórios de tribunais alemães, pode haver mais de mil crimes violentos anualmente relacionados à extrema direita.
“É necessário acabar com a duplicidade de critérios ao lidar com a violência da direita e o terrorismo, em comparação com outras formas de violência política”, disse Koehler.
E conclui: “Não só as vítimas da violência da extrema direita apontam isso como uma hipocrisia, mas os criminosos veem como uma forma de vitória se conseguirem safar-se, ou seja, cometer crimes de natureza terrorista sem serem perseguidos por terrorismo ou rotulados como tal”.