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Negligência e ganância viram Vidas Barradas

A população de Brumadinho, em Minas Gerais, verteu lágrimas. Não de choro pela tragédia que caiu sobre a cidade, mas de emoção. Foi quando assistiu em primeira mão o documentário Vidas Barradas ─ com a participação de muitos moradores da cidade ─ que dá voz aos familiares das vítimas do rompimento da barragem de Brumadinho, em 25 de janeiro deste ano, tido como o maior acidente de trabalho da história do Brasil,

Produzido pela Clara Digital e pela Comissão Internacional de Juristas Independentes, e sem fins lucrativos, o documentário, de 80 minutos, é o mais completo registro do que aconteceu naquele dia e do que acontece quase um ano depois na vida de familiares, moradores e dos poucos que sobreviveram ao desastre com a barragem da Vale.

A data está marcada na memória e na alma dos moradores da cidade mineira, onde direta ou indiretamente dependiam financeiramente da Vale. A multinacional brasileira é uma das maiores empresas de mineração do mundo e a maior produtora de minério de ferro. Apesar de todo o investimento tecnológico e dos milhões ou bilhões de reais de faturamento, um instrumento simples de segurança não funcionou – a sirene de alarme. O alerta, que poderia ter salvado vidas, ficou calado naquele dia. E exatamente às 12h28 a barragem na Mina do Córrego do Feijão ruiu.

No momento, os funcionários da mineradora almoçavam no refeitório, que foi o primeiro a ser atingido. Com a violência de um tsunami, a onda de barro engoliu prédios, vagões de trem, veículos e vidas. Em minutos, arrasou comunidades rurais inteiras. Vidas Barradas apresenta relatos desesperados de pais, filhos, irmãos, familiares e amigos das vítimas da Vale. Um documentário que exige fôlego para se assistir diante de tantos depoimentos emocionantes e dolorosos, como o da dona Maria Regina, mãe da Priscila, funcionária há dez anos da Vale.

Aos prantos, ela relata que acorda todas as noites sufocada pela lama que sai de seu nariz e boca. Ela sabe que é um pesadelo, mas acredita que esteja passando pela mesma sensação que a filha passou antes de morrer. Inconsolável também continua o senhor Geraldo Resende. Ele quer saber onde está o corpo da filha Juliana. A jovem e o marido Denis morreram juntos no desastre. Geraldo agora cuida dos dois netos, órfãos de pai e mãe. Juliana é uma das 14 vítimas que ainda não foram encontradas, ao menos até esta data. Sua esperança é enterrar a filha.

O barulho dos helicópteros e o pouso em frente à igreja da Matriz da cidade chegando com sacos de corpos pendurados poderia fazer parte de um filme de guerra, de um filme apocalíptico. Onze meses após o rompimento da represa de rejeitos de minério, a saúde mental dos moradores vive trauma equivalente ao de quem passa ou passou por uma guerra, com o aumento de suicídios e o consumo de remédios controlados, como antidepressivos e ansiolíticos. Vidas Barradas traz o depoimento de especialistas em saúde mental que relatam as consequências de um trauma, tanto para os parentes das vítimas como para aqueles que sobreviveram ao mar de lama.

O documentário mostra ainda o relato de um grupo de vítimas quase esquecido pela mídia, mas que sofre com a tragédia de Brumadinho. São os índios Pataxós da Aldeia Naô Xôhã. O vídeo dá voz ao povo que viu a lama destruir o seu “deus rio”, a entidade da natureza que dá vida e alimento para a aldeia. Hoje, o grupo depende de caminhões pipa para beber, cozinhar e lavar tigelas. O ritual da Festa da Água, cultura ancestral dos Pataxós, corre o risco de se perder com o tempo, porque eles não podem mais chegar perto do rio contaminado e morto.

Vidas Barradas também apresenta o testemunho de quem trabalhou dia e noite em buscas de sobreviventes, os bombeiros. Heróis que choraram juntos com a cidade, que mergulharam na lama contaminada em busca de sobreviventes e corpos. Relatos de religiosos e fiéis, que independentemente da religião, deram-se as mãos em busca de oração e conforto espiritual.

Os depoimentos mostram que a Comissão Internacional de Juristas Independentes ficou estarrecida com o que viu em Brumadinho. Na mesma direção está o depoimento do promotor André Sperling, do Ministério Público de Minas Gerais, bem como as declarações dos deputados André Quintão e Rogério Correia, relatores das Comissões Parlamentares de Inquéritos (CPIs) de Brumadinho, da Assembleia Legislativa do estado de Minas e da Câmara dos Deputados, respectivamente.

Recuperar a alegria, voltar ao cotidiano, realizar pequenas ações, como uma comemoração em uma escola, são situações em que a população de Brumadinho ainda vai levar muito tempo para realizar. Vidas Barradas mostra que a lama da mineradora ainda corre pelas ruas, casas, estradas e almas dos moradores da cidade que ruiu por conta da negligência e da ganância.

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