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Ney Matogrosso, o intérprete, solta os bichos em livro

Foto/Reprodução

Ney Matogrosso tem uma memória privilegiada. Pode descrever as mais longínquas lembranças de sua vida – com direito a imagens, cores e aromas. A primeira delas o conduz à infância, quando tinha apenas 3 anos, montado em cima de jabutis, quando morava com a família em Salvador. “É minha primeira memória”, conta Ney, aos 77 anos, nesta entrevista. Nos últimos tempos, aliás, suas lembranças têm sido revisitadas com mais frequência do que ele planejava.

Descrito pelo próprio Ney como um “livro de memórias”, Vira-Lata de Raça, de sua autoria, e pesquisa e organização de Ramon Nunes Mello, está sendo lançado pela editora Tordesilhas. E está prevista para breve a biografia do cantor escrita pelo jornalista Julio Maria.

“Em princípio, não me agradava (a ideia das biografias), mas hoje em dia você não pode impedir”, diz Ney. Muito disso se deve, segundo ele, à experiência que teve durante a realização de sua biografia anterior, Um Cara Meio Estranho, de Denise Pires Vaz, lançada em 1992. “Fiz quando eu tinha 50 anos. Aquilo foi uma perturbação na minha vida, porque foram quatro anos, eu não tinha mais paciência. A gente brigou. Eu achava que tudo exigiria essa mesma coisa e não tinha vontade de fazer, mas tudo bem, um já está saindo e o outro, bem adiantado.”

Na realidade, o livro Vira-Lata de Raça não segue o formato tradicional de uma autobiografia, apesar de ser escrito em primeira pessoa, tampouco de uma biografia não autorizada. O poeta, escritor e jornalista Ramon Nunes Mello pesquisou entrevistas concedidas por Ney ao longo dos anos à imprensa e, a partir dessas informações, conduziu três grandes entrevistas com o cantor, para preencher lacunas e atualizar pensamentos. Além dos texto, a obra reúne 70 fotos e discografia completa.

E é doloroso, muitas vezes, acessar essas lembranças? “Na verdade, todas as dores passaram. Não sou uma pessoa sofredora. Estou em outra fase da minha vida, portanto, mesmo sobre o relacionamento conturbado com meu pai, falo com clareza, porque ultrapassamos isso. Teve um momento em que ficamos amigos íntimos, conversamos sobre a maneira que ele educou os filhos homens e a diferença com que ele educou as filhas mulheres. Pra nós, homens, era a pão e água, era muito duro, e ele disse que tinha se arrependido”, responde Ney.

Seu pai, o militar Antonio Matogrosso Pereira, é um personagem importante na história de Ney. O cantor o descreve, no livro, como “conservador, cabeça-dura, e que tinha pavor a qualquer possibilidade de manifestação artística que eu pudesse desenvolver”. O oposto da postura de Ney, sempre transgressora, libertária. A difícil relação entre os dois perdurou durante a infância e a adolescência do artista. O cantor faz uma constatação forte dessa fase: “Eu odiava meu pai, meu pai me odiava”.

Anos mais tarde, com Ney já dono do próprio nariz, veio a conexão entre pai e filho. “Eu tinha saído de casa com 17 anos, virei artista com 31. Isso nem era uma questão na minha cabeça, o que meu pai vai achar, porque eu já era responsável por mim mesmo. Então, ser artista já tinha sido digerido por ele. A primeira fase da minha vida com ele foi conturbada, mas depois se resolveu quando ele passou a me respeitar, quando viu que eu vivia mal, mas que eu não aceitava nada dele.”

Há um momento simbólico contado no livro, quando o pai estava prestes a voltar a Mato Grosso e marcou encontro com Ney na frente do prédio do jornal O Estado de S. Paulo, então no centro de São Paulo. Ali Ney beijou o rosto do pai, algo que nunca um filho homem dele tinha feito. “Depois desse dia, nós nos beijamos até o fim da vida dele. Então, aquele ódio que existia entre nós, no fundo, era um amor incubado, foi o que concluí depois.”

O livro segue uma espécie de linha do tempo de vida e carreira de Ney, dando conta também de algumas curiosidades pouco conhecidas do público. Como a história de uma moça com quem ele tinha se relacionado na adolescência que apareceu na casa de sua mãe com sua suposta filha, um ano depois de ele sair de casa. “Minha mãe me disse que, quando ela quis pegar a criança, a moça sumiu. Ela disse que não tinha levado para dar, tinha levado para conhecer. Nunca mais tive notícias dela”, diz. “Nesses anos todos, já fiz três exames de DNA, com três pessoas diferentes, e todas deram negativo.”

Há ainda a temporada em que ele viveu em Brasília, no início dos anos 1960. Não foi apenas um período de descobertas, como a primeira vez que fumou maconha e a primeira experiência sexual com um homem. Lá também teve o primeiro contato com a morte, quando começou a cuidar de crianças em estado terminal, no Hospital de Base. “Foi um exercício amoroso para mim, que eu fazia com tanto gosto. Eu amava tanto aquelas crianças. Eu odiava assinar aquele ponto, mas eu ia com prazer fazer esse trabalho”, lembra ele.

Apesar de adotar essa linha cronológica, o livro traz capítulos que tratam de temas específicos, que sempre geram interesse quando o assunto é Ney Matogrosso, como sexualidade, drogas, o icônico Secos & Molhados e Cazuza, uma de suas grandes paixões. Aliás, foram poucos amores em sua vida. “Tive uns 4, no máximo 5. Tem gente que passa pela vida sem ter um (risos).”

Ney volta a falar que não se enquadra em rótulos. “Já transei com muitas mulheres e com muitos homens, sou livre para me relacionar com quem eu quiser”, diz ele, num trecho do livro. E que se nega “a ser estandarte de movimento gay”, “pois acredito e defendo direitos diversos, não somente da liberdade sexual”. Reforça ainda que faz política em cima do palco. E não cobram sua posição partidária? “Não, porque não admito que cobrem, não sou obrigado”, responde ele.

Sobre o cenário do Brasil sob o comando do presidente eleito Jair Bolsonaro, que tem um discurso conservador, Ney diz: “A expectativa está aparentemente estranha. A gente precisa esperar que as coisas comecem a andar, porque muita coisa é falada antes e, depois, pode ser que não aconteça. O presidente foi eleito. Ele vai ser presidente do Brasil, não apenas para quem o elegeu”.

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