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Nilceia, psicóloga filha de Oxum, deita e rola com novas descobertas

Nilceia era bruxa. Meio sem noção, mas era.

Desde criança, adorava voar. De noite, deixava o corpo e ia brincar com as irmãs, todas as três haviam aprendido a se movimentar em sonhos lúcidos com a avó índia. Era uma delícia – e ela achava que todo mundo fazia isso, a sem noção.

As irmãs pararam, normalizaram, ela continuou. E passou a atrair borboletas. Movia os braços sobre a cabeça, criando correntes de ar, e os bichinhos vinham e pousavam em seu ombro. Quem a via agitando os braços na rua, que nem um orientador de pouso em porta-aviões, pensava, “Coitada, uma menina tão bonita, doidinha de pedra”. Ela achava que todo mundo fazia isso, a sem noção.

Na adolescência, quando começou a transar, a semnoçãonice assumiu outras formas. Ela ia pra cama com o namorado e dava umas oito, ficava radiante e satisfeita, e o carinha, um bagaço. Ela achava que era assim, que todo mundo se comportava desse jeito…

Nilceia fez faculdade, tornou-se psicóloga reichiana. A essa altura, percebeu que a grande maioria dos terapeutas não adivinhava – ou melhor, sabia, “via” – as motivações ocultas dos pacientes. “Que pena, isso ajuda tanto na terapia”, costumava dizer a si mesma.

Certa vez, já com muitos anos de janela, ela foi a uma sessão de umbanda. Lá pelas tantas, a chefe do terreiro pediu-lhe que amarrasse um pano amarelo na cintura (Nilceia era filha de Oxum) e entrasse na gira. Ela obedeceu. Pouco depois, começou a atender os presentes. Não o público, não os cavalos: as próprias entidades. Elas se aproximavam, saudavam-na reverentemente e começavam a contar seus problemas.

– Sei que devia ajudar os outros para que eu possa evoluir. Mas gosto tanto de dar… – disse um estivador alto e forte, com uma pombagira das brabas encostada no lombo. – É pecado, mas…

– Pecado não existe – cortou a psicóloga reichiana. – Faça o que quiser na cama, porém não se esqueça de que o crescimento espiritual também é importante. – E falou em quebra de couraça, na explosão libertadora do orgasmo, deu uma aula de Reich para principiantes.

A encantada ficou encantada, e mais ainda porque ela traduziu termos como orgasmo para gozo, que as entidades conheciam de cor.

Duas horas depois, quando Nilceia estava à beira de um colapso, a pombagira chefe veio agradecer pela sessão de terapia. E aí a sem noção falou:

– Obrigada é o cacete! Vocês acabaram comigo, estou esgotada, não posso atender de graça!

Perigo mortal. A pombagira podia desembestar, soltar as feras, mas não. Parou, pensou, depois falou.

– Tá certo. Nos próximos dias entramos em contato. E descanse bem, queremos mais uma sessão no fim do mês.

Dias depois, um homem num terno bem talhado tocou a campainha do consultório.

– Dra. Nilceia? Mandaram entregar aqui… e despejou no sofá 500 mil reais em dinheiro vivo.

Ela quis recusar, mas ele insistiu.

– Por favor, aceite. Se não, meu exu me ferra e vou preso – e acrescentou. – É dinheiro ilegal, mas não de latrocínio… Grana de otário, de vítimas do golpe da pirâmide.

Nilceia acabou ficando com o dinheiro.

Dias depois, quem tocou a campainha foi uma mulher jovem, linda, num vestido sedutor. Entregou-lhe um embrulho, Nilceia abriu e tinha lá dentro uma calcinha velha.

– Foi de dona Maria Padilha, a rainha das pombagiras. Quando você quiser trepar, mas trepar muuuito, é só vestir e se jogar na balada. Não falha – acrescentou com um sorriso –, sei disso por experiência própria.

Desde esse dia, a rotina da terapeuta mudou. Pacientes de carne e osso nem pensar, não tem tempo nem energia para eles. Uma vez por mês, recebe uma nota preta, trazida por homens sempre bem vestidos. Ela os fotografa discretamente e envia a foto para a polícia, pedindo que sejam investigados. Nenhum deles foi preso, evidência de que têm fortes protetores, além dos exus.

E, pouco antes do fim do mês, quando ocorre a sessão de terapia com os encantados, ela veste a calcinha de dona Maria Padilha e vai à caça. Volta para casa esgotada, mas com um sorriso largo no rosto. E na noite seguinte encara revigorada as confidências de exus, pombagiras, ciganas, marinheiros e até de caboclos, sentindo-se quase um deles, uma irmãzinha bem resolvida, sem traumas a superar, sem couraças a romper.

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