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Mistério da idolatria

No Brasil colônia dos EUA, Kennedy foi compadre de uma beata do Ceará

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Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto Editoria de Artes/IA

Já vai longe o tempo em que tudo que era mais ou menos para os norte-americanos era maravilhoso para os brasileiros. Lembro dos analistas da época dizendo que um espirro dos Estados Unidos significava pneumonia para o Brasil. O Brasil se consolidou como uma democracia, mas o fantasma dos EUA acima de tudo e em cima todos parece estar de volta com Donald Trump. Sorte é que, como os fantasmas dos anos 50, 60 e 70, um dia ele vira gelo na Groenlândia ou comida de peixes no Canal do Panamá. Enquanto isso não ocorre, vale a pena lembrar de um ciclo que as ocorrências não conseguiram apagar. Nesse tempo, a maioria do povo brasileiro tinha os “irmãos” norte-americanos como exemplos para tudo, inclusive e sobretudo para o que era ruim. Éramos uma colônia e sabíamos.

A bajulação era tão exacerbada que, em 1964, durante o período inicial da ditadura, o embaixador do Brasil em Washington, Juracy Magalhães, atingiu orgasmos múltiplos ao cunhar a frase “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Vivíamos a primeira fase da caça aos inexistentes comunistas. O subserviente bordão voltou a ecoar recentemente, por ocasião da etapa final de busca aos comunas que os governos da borduna inventaram para se perpetuarem no poder. Já vai longe esse período. Época de guerra fria entre EUA e a antiga União Soviética, a estação favorável a Tio Sam gerou um clichê popular para se contrapor ao lugar-comum dos bajuladores de ocasião.

Foi a fase em que qualquer tosse dos Estados Unidos significava pneumonia em último grau para o Brasil e, em estágios mais avançados, em coqueluche texana para os brazucas. Presidente dos EUA em 64, Lyndon Baines Johnson foi como um pai para os generais brasileiros do passado, os chamados revolucionários. Johnson havia substituído John Fitzgerald Kennedy, assassinado em novembro de 1963. Mais jovem presidente norte-americano, JFK tinha charme, influência, carisma e ótimo humor. Raparigueiro de boa índole, sua fama logo correu o mundo, chegando ao interior do Ceará, mais precisamente a Crateús, cidade vizinha de Ubajara, berço do imortal jornalista e contador de causos José Wilson Ibiapina.

Por lá vivia uma jovem e humilde beata. Ela era daquelas fãs enlouquecidas do então presidente norte-americano, a quem só viu uma única vez na TV da praça principal do município. De boa memória e muito atenta, ficou tão ensimesmada que, próximo de dar à luz a seu primeiro filho, pediu paz e saúde a Padre Cícero Romão Batista, prometendo que, se a criança nascesse saudável, Kennedy faria o apadrinhamento. Nascido e prometido, o pimpolho foi levado para o benzimento do bispo Serafim Ambrósio, autoridade maior da igreja matriz. Informado sobre o prometimento, dom Serafim ficou perplexo, mas, com o sentimento divino, jurou que iria ajudar. Escreveu uma carta ao então embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Lincoln Gordon, pedindo instruções.

Duas ou três semanas após o envio da missiva, o sacerdote recebeu como resposta que, diante do amontoado de afazeres presidenciais, John Kennedy se sentia muito honrado, mas não poderia comparecer para cumprir tão sublime oferecimento. Entretanto, pedia ao próprio bispo que, em nome do presidente dos EUA, batizasse o menino. Assim foi feito. Em duas semanas, hino nacional norte-americano a todo volume, bebê enrolado na bandeira vermelha e branca, estava sacramentado o compadrio de John e Jacqueline Kennedy com o casal cearense. Sem rádio ou televisão à disposição, a jovem mãe só tinha conhecimento dos ocorridos no Brasil e no mundo quando alguém a informava nos ouvidos.

Foi assim no dia do assassinato de Keneddy, em 22 de novembro de 1963. Sem saber como dar a notícia, o bispo batizador adentrou a pobre casa, fez alguns rodeios, mas teve de ser mais direto para chegar a tempo de celebrar a missa das 19h: “Minha querida, estou aqui, a pedido de nosso Pai celestial, para informá-la que o presidente John Kennedy acaba de passar dessa para melhor. Foi assassinado com um tiro na cabeça na cidade de Dallas, no Texas”. Com os olhos arregalados e marejados, a novata genitora limitou-se a segredar: “Meu Deus! Tadinha da cumadi Jacqueline”. Eis o mistério da idolatria. Ainda bem que, nesse tempo, Melania Trump só existia na mente doentia de Donald.

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*Wenceslau Araújo é Editor-Chefe de Notibras

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