Judas no poder
No Brasil de anjos e demônios, todo dia é dia de malhar os traíras

Os infiéis, inconfidentes e traíras das leis enforcam tanto feriado que não sei mais qual o dia que não pode comer carne, o dia de comer chocolates, o dia que enforcaram Tiradentes, muito menos o dia de malhar Judas. Embora tenha perdido o timing, mantive o feeling de menino suburbano e de jornalista ainda extremamente ativo, mas esqueci do Sábado de Aleluia. Na verdade, esqueci para que serve a ocasião. Mesmo inconscientemente, cometi um desses pecados imperdoáveis. Por isso, decidi usar o Domingo de Páscoa para falar do Sábado de Aleluia, data em que, tradicionalmente, portugueses e brasileiros confeccionam e “malham” bonecos de trapo representando Judas Iscariotes, o discípulo que traiu Jesus. Essa prática geralmente ocorre no fim da Semana Santa.
Pequei, fui punido pela cobrança de alguns leitores e acabei sendo obrigado a escrever mil vezes a frase O pecado é uma ferida, mas a confissão é um remédio. Escrevi 1001 vezes e, ao que parece, estou medicado. Por isso, sei que falar do pecado dos outros não me torna um santo. No entanto, o tipo de pecado e o perfil dos pecadores aos quais me refiro certamente me isentam da pecha de fofoqueiro. Falo dos Judas que estão no poder em Brasília, no Brasil e em boa parte do mundo, particularmente nos Estados Unidos, onde, em breve, o linchamento será diário. Por aqui, a expectativa é a mesma. A diferença está no modelo dúbio de sociedade.
Muitos dos candidatos a Judas fogem, se aboletam em embaixadas, promovem manifestações diárias contra o Judiciário ou conseguem um habeas corpus preventivo no STF para se livrarem do poste. Nem sempre alcançam o objetivo desejado, mas, mesmo condenados, viram ídolos, mitos e até salvadores da pátria. Talvez seja essa a principal razão do meu esquecimento sobre o mote do Sábado de Aleluia. Uma pena, mas a tradição de malhar o Judas no Brasil perdeu a graça. Faz tempo que o povo, com raríssimas exceções, inventa Judas, desmoraliza Judas, demoniza Judas, malha Judas, assassina Judas, idolatra Judas e, de quatro em quatro anos, elege Judas.
Não à toa, temos um presidente na terceira encarnação e um ex-presidente na boca de espera. É o tal que, se achando o próprio Deus, sobe em trios elétricos, fecha ruas e avenidas e ora a todos os santos e demônios jurando que é do bem e que não tem sede de poder. Todavia, desde que perdeu a eleição não pensa em outra coisa que não seja correr atrás do poder. Na outra ponta, há um pretenso anjo barroco, cujo derradeiro milagre foi asilar Nadine Heredia, mulher do Humala, o homem da mala cheia de grana recebida ilegalmente da Odebrecht. O abençoado mexeu com o Peru alheio e, mais cedo ou mais tarde, terá de explicar a seus eleitores por que resolveu segurar a barra da mulher que fugiu do Peru enfurecido.
Após uma noite de reflexões, conclui que não esqueci de malhar o Judas. Descobri que, a exemplo da maioria dos brasileiros, não sei que Judas devo malhar. Será que malho o que fala como apóstolo brigando com presbítero, o que diariamente faz planos com Jesus, mas comumente é flagrado amando a Judas Iscariotes, ou aquela multidão que trabalha para anistiar patriotas travestidos de golpistas e de vândalos? Quanto aos líderes, acredito no da faca ou no da foice e do martelo? Na dúvida, é melhor generalizar. Judas são todos aqueles que nos tratam como palhaços, confundem emendas parlamentares com remendos elementares e se utilizam do que é público como se estivessem em suas privadas.
Como nunca é tarde para se redimir dos pecados, recuperei a memória e, mesmo simbolicamente, confeccionei e malhei todos os meus judas. Como são muitos, talvez tenha esquecido momentaneamente de alguns. Nada de mais. Daqui a pouco mais de um ano e meio talvez os anjos de luz consigam mostrar à sociedade que Judas não é nenhum estranho. Pelo contrário. Ele é ou se faz de íntimo. Tanto que, em troca do voto, nos oferece óculos, dentaduras, empregos fictícios e até um lugarzinho no céu. Desaparecem depois de eleitos. Sobre a próxima eleição presidencial, é bom não esquecermos que o Diabo era um anjo e Judas um apóstolo. Até lá, malhemos indistintamente os que se apresentam como traidores. Afinal, todo dia é dia de malhar os traíras.
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Armando Cardoso é presidente do Conselho Editorial de Notibras
