No país do faz de conta, o conceito político de comunista transformou-se numa tênue linha divisória. De um lado, a minoria que grita vivas e rende loas a qualquer gesto do líder máximo do besteirol. De outro, todos aqueles que ousam desafiar a ideologia barata ou as ordens superiores. Deixar de tomar cloroquina, usar máscara, atender às recomendações de restrição social, se render à ciência e tomar a vacina são sinônimos clássicos do novo comunismo. Ainda que vagos, os grandes exemplos de sinonimia da atualidade são esquerda e comunas e direita e patriotas. Ou seja, temos de torcer pelo desgoverno, pela parafernália administrativa e pelo negacionismo, sob pena de sermos rotulados e atacados despropositada e ferozmente pelos guardas da esquina.
Parafraseando Pedro Aleixo, vice-presidente brasileiro no governo do general Costa e Silva, entre 1969 e 1970, “o problema não é a autoridade maior. É o guarda da esquina”. No caso em análise, trata-se daquele que, mesmo sem remuneração, é capaz de desonrar, humilhar a até matar em nome de uma doutrina ideológica. Todos lembram que, sob esse pretexto, “forças de segurança” do mito agrediram pessoas, inclusive médicos e enfermeiros, pelo simples fato delas estarem cumprindo protocolos científicos contra a pandemia. E não podemos minimizar esses ataques, creditando-os à indisciplina popular. Foram atos realizados por grupos articulados, com ideais potencialmente terroristas e propósitos claramente antidemocráticos.
São os guardas da esquina, conforme frase cunhada por Pedro Aleixo em 13 de dezembro de 1968, data da decretação do Ato Institucional 5. Mineiro, político e civil em um governo militarizado até a medula, Aleixo, único voto contrário ao ato ditatorial, confidenciou a Costa e Silva sua preocupação com as consequências do AI-5. Simploriamente, o general presidente indagou a razão. Premonitoriamente, o então vice-presidente sapecou: “O problema de uma lei assim não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país. O problema é o guarda da esquina”. Despreparados e soltos na ribalta, os guardas de ontem são alguns dos milhares de policiais militares e bombeiros de hoje, os quais não se incomodam em fazer parte da somatória agressiva dos bolsominions, que não poupam nem mesmo os iguais.
Há cerca de um mês e meio, a médica Mayra Pinheiro, conhecida como “capitã cloroquina”, quase foi linchada apenas porque postou em suas redes sociais o cartão com o carimbo da vacina AstraZeneca. Detentora de um cargo de ponta no Ministério da Saúde, chegou a ser chamada de comunista pelos bolsonaristas raiz, que morrem silenciosa e patrioticamente, mas não aceitam o imunizante salvador. Que morram em paz. Mais uma vez lembro a frase de Pedro Aleixo para afirmar que, muito pior do que o período do regime militar, entre 2o64 e 1975, hoje qualquer apoiador fanático do presidente da República se acha um justiceiro.
Grupos bolsonaristas acusaram recentemente o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, de comunista. Sabem por quê? Porque o líder da maior nação democrática do mundo excluiu o Brasil de uma lista de 92 países de baixa renda para receber doação de 500 milhões de doses de vacina da Pfizer. Esse povo esquece que, pelo menos “teoricamente”, o Brasil não está incluído nessa faixa de não conseguir comprar imunizantes. Na verdade, não comprou porque apostou no quanto pior melhor. Pior é fingir esquecimento sobre nossa inclusão em um pacote de 6 milhões de doses enviados pelo mesmo Biden à América Latina e ao Caribe. Ou seja, qualquer presidente ou líder estrangeiro só é bom quando nos estende a mão ou quando prefere não responder aos gritos.
Quando reagem a algum tipo de crítica de um brasileiro, principalmente de alguém vinculado à turma do comando, é imediatamente apelidado de comunista. Improvável que a turma do rebanhão saiba o que realmente significa o termo comunismo, mas usa as redes sociais para afirmar que Bolsonaro foi eleito para combatê-lo. Na verdade, o instinto e a palavra de ordem são a morte dos que não se alinham. Dependendo de como se lê a definição do vocábulo, comunismo, do latim communis, é uma ideologia política e socioeconômica que pretende promover o estabelecimento de uma sociedade igualitária. E ponto. Não precisa ser de direita ou esquerda para perceber que igualdade não é o objetivo do atual governo, tampouco de quem o segue despudoradamente.
*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978