Em uma dessas tardes de ócio remunerado e de quarentena forçada, associadas ao cochilo oxigenador, repeti o gesto que tenho feito há quase um ano após o almoço. Nesse dia, recebi uma ordem espiritual: não pensar, ouvir ou falar de política. Encerradas a digestão – às vezes nem espero – e a audição – normalmente esqueço as imagens – do telejornalismo vespertino, acionei um pendrive que deixo espetado no aparelho de TV. Nele, havia gravado cerca de 850 vídeos variados de Música Popular Brasileira. Tenho mais umas 30 dessa engenhoca com músicas diversas, a maioria com canções, baladas e rocks nacionais e internacionais dos anos 60, 70 e 80, mas nenhuma das cantilenas de Anita, Ludmila, Pablo, Maiara e Maraísa, Marília Mendonça e Naiara Azevedo.
Com as devidas desculpas, permito-me refugar do que avalio como refugo musical. Nada contra as pessoas, mas tudo a favor das boas, recomendáveis e normalmente inesquecíveis composições e melodias de ontem e de anteontem. Com raríssimas exceções, as de hoje, pelo amor de Deus! Amante do cancioneiro caipira, paixão que aprendi com minha avó índia uruguaia, cheguei a ensaiar algumas audições do denominado sertanejo universitário. A primeira decepção foi ouvi-los. Descobrir que a maioria esmagadora jamais pisou em uma universidade para tentar um canudo foi a segunda. Embora não seja crítico musical, posso afirmar que, com boa peneirada, consigo ouvir hoje alguma coisa interessante do gênero. A dupla Chitãozinho & Xororó está nessa simplória lista.
Importante é que os enganadores estão todos milionários, a exemplo do atual futebol brasileiro, onde assistimos quartas, quintas, sábados e domingos uma legião de pernas de pau que ainda não tiveram o prazer de serem apresentados à bola. Também são todos milionários, disputando marcas de automóveis, helicópteros, jatos e iates. Lamentável para quem viu nos estádios abarrotados Pelé, Pepe, Coutinho, Gérson, Rivelino, Tostão, Dirceu Lopes, Pedro Rocha, Sócrates, Junior, Leandro, Roberto Dinamite, Adílio, Maradona, Jorge Mendonça, Ardilles e Zico, entre dezenas de outros craques. Desses, poucos chegaram à Europa, consequentemente ao milhão.
O que mais importa no Brasil sem memória, sem propostas e de adoração ao glamour? Nada, além do que já temos: políticos corruptos e demagogos, ladrões de paletó e gravata, presidente eleito para proteger exclusivamente a família e esquecer os “feitos” quando é enquadrado e chefe de Executivo que não sabe o que fazer na função. É o Brasil do caos. Um país naturalmente rico, multifacetado, com uma população guerreira e trabalhadora, mas fadado ao sobe e desce econômico, à desimportância internacional e, o que é pior, na lona por conta dos desmandos e sonhos mirabolantes de quem elegemos para comandá-lo. Falei que não ia falar de política.
Nessa tarde de devaneios, esqueci temporariamente as mazelas. Levitei e, no vai e vem do cochilo, inclui uma extensa lista de letras e melodias perdidas no tempo. Dormitei ao som da excelente Trem Bala, da jovem Ana Vilela. Viajei com a leveza de versos como “…É sobre saber que em algum lugar alguém zela por ti…É se sentir infinito num universo tão vasto e bonito…A gente não pode ter tudo… Qual seria a graça do mundo se fosse assim? Beleza de composição. Tinha um compromisso com o físico – já era hora da caminhada -, mas fui seduzido pela Estrada do Sol, composta por Tom Jobim e interpretada por Agostinho dos Santos, ambos falecidos. Nova viagem com “É de manhã vem o sol, mas os pingos da chuva que ontem caíram ainda estão a brilhar, ainda estão a dançar… Ao vento alegre que que me traz essa canção…Quero que você me dê a mão vamos sair por aí sem pensar no que foi que sonhei, que chorei, que sofri, pois a nova manhã já me fez esquecer…”
Quem, no auge de seus sentimentos mais primitivos, ousaria abrir os olhos para os problemas. Melhor a nostalgia, sem melancolia. Decidi curtir o que faz bem, alivia tensões e nos faz chegar às idades adulta e madura absolutamente resolvidos. Foi o que experimentei nessa meteórica Vista chinesa (Emílio Santiago). Ainda degustei Um chope pra distrair (Paulo Diniz), conheci Sá Marina (Wilson Simonal), andei na Chalana (Almir Satter), estiquei até San Francisco (Scott McKenzie), visitei a California Blue (Roy Orbison), descobri o Baby Blue (The Echoes) e percebi tardiamente que andar devagar é sinônimo de Tocando em frente (Almir Satter). Por isso, pensei rápido e tive a certeza de que jamais chegaria à Refazenda (Gilberto Gil) sem Alegria, alegria (Caetano Veloso). É minha Sina (Djvan).
O mais interessante foi lembrar que havia pertencido à Linda juventude (14 Bis), andei de carro com Zanzibar (A Cor do Som) e que tinha conhecido de perto Meu Pequeno Cachoeiro (Roberto Carlos ) e a Rua Ramalhete (Tavito). Triste foi lembrar que Você abusou (Antônio Carlos e Jocafi) quando soube que estive com Leda e Olga (Adilson Ramos), em companhia da Bela da tarde (Alceu Valença), comendo Tareco e mariola (Flávio José), admirando O sol (Jota Quest) e louco para fazer a Travessia (Milton Nascimento) da ponte que liga Juazeiro e Petrolina (Alceu Valença).
De minha cama ao Infinito (Mário Greick) foi pouco mais de uma hora, tempo suficiente para quase virar Maluco beleza (Raul Seixas), tirar a Pintura íntima (Kid Abelha), perceber que era só um Flash back (Dalto) e confirmar como verdadeiros os Comentários a respeito de John (Belchior). Logo eu, uma Metamorfose ambulante (Raul Seixas), ávido pelo Terral (Ednardo) e que era chamado de O Bom (Eduardo Araújo) quando paquerava a Menina Linda (Renato e Seus Blue Caps). Assustava-me sempre que a ouvia sussurrar Outra vez (Roberto Carlos) que secara o Whisk à go-go (Roupa Nova, com Paulinho).
Na caminhada pelo Planeta água (Guilherme Arantes), senti que havia chegado o Tempo do amor (Wanderléa). Tive oportunidade, andei no Trem das sete (Raul Seixas), cantei O Mundo anda tão complicado (Legião Urbana) e experimentei a Fórmula do amor (Léo Jaime). Contudo, como foi bom despertar de Minha primeira desilusão (Silvinha), justamente Quando o sol começou a bater na janela do teu quarto (Legião Urbana). Agradeci a Gentileza (Marisa Monte) dos que encontrei pelos Caminhos (Raul Seixas) e, bem lá no fundo do Paraíso (Belchior), lembrei-me de alguém gritando: Vem andar comigo (Jota Quest). Claro que adorei o sonho quase acordado, mas o melhor de toda a Viagem (Taiguara) foi fechar temporariamente olhos e ouvidos para as besteiras do Jair e para as rimas do tipo ô ô com amor. Ufa!!!
*Armando Cardoso é jornalista