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O namorado de Vila Isabel

Noel, sob teia de aranha, procura roupa para sair

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Reprodução/Cultura Alternativa

Se é mentira ou mera invenção do povo, não sei. Mas vou lhe contar como ouvi essa história da minha avó, que morou por algum tempo em Vila Isabel, o bairro carioca onde o samba corre nas veias de qualquer um que tenha bom tino. Não que lá também não andem os surdos de pé, que não sabem arriscar sequer um passinho pra cá, dois pra lá.

Pois bem, o nome do nosso herói, que não tinha superpoderes nem a fisionomia dos galãs de Hollywood, era Noel. Ele, no entanto, apesar da aparente falta de atrativos, conquistava as mulheres, inclusive algumas distintas senhoras casadas, apenas com a sua capacidade única de juntar um monte de palavras, que encantava toda a cidade do Rio de Janeiro. Sim, o gajo era compositor. Aliás, o maioral quando o assunto era samba!

E lá estava o Noel, que andava enrabichado por uma tal Ceci, tomando aquele banho caprichado para se encontrar com a amada. A moça, segundo me consta, era muito requisitada por todos cavalheiros distintos da cidade, desejosos de carinhos e afagos, logo ali na Lapa, bairro boêmio. Entretanto, apesar da profissão malvista pela parte feminina da sociedade, o nosso sambista parecia não se importar com as fofocas.

De banho tomado, toalha felpuda enrolada na cintura, lá foi o Noel para o seu quarto. Tratou logo de vestir a sua samba-canção, enquanto vasculhava o armário à procura da mais bela camisa de cetim. Qual foi a sua surpresa ao descobrir que todas haviam sumido, inclusive aquela que comprara na quinta-feira ali mesmo na loja do seu José, na esquina com a Teodoro da Silva.

O rapazola, mais que depressa, pôs a boca no trombone. Questionou a dona Marta, sua mãe. Esta, por sua vez, a princípio, se fez de desentendida. Não queria entrar em atrito com o filho, que sabia era turrão. Mas não adiantou, pois Noel saiu do quarto quase como veio ao mundo, caso não fosse por aquela samba-canção. A velha deu-lhe de ombros, como a se preocupar com a teia de uma aranha que há muito se alojara bem no alto do lustre da sala.

Com uma visão privilegiada, o aracnídeo a tudo observava. Com certeza tentando imaginar o que era aquela algazarra lá embaixo. Já conhecia aqueles dois humanos de outros carnavais. Todavia, não se lembrava de ter visto aquele rapaz em tão poucas vestes. Quis até se fazer de tímida e, por um instante, virou os quatro pares de olhos para o teto. Isso não durou muito, nada além de alguns míseros segundos.

Mais poderosa até que o veneno de suas quelíceras, a curiosidade aguçou aquela aranha. Agora, sem o menor pudor, voltou todos seus olhos lá para baixo. Para os mais atentos, poder-se-ia dizer, sem medo de cometer qualquer exagero, que aquela aranha apresentava um sorriso. Sim, um sorriso! Não um sorriso vulgar. Mas daqueles que emolduram os rostos dos cínicos.

Noel, alheio a tudo que acontecia bem acima de sua cabeça, estacou diante da sua genitora. Esta o observou de cima a baixo, com aquele ar de superioridade que todas as mães sabem que possuem. Não adiantou. O filho, intransigente, começou a reclamar.

— Senhora minha mãe, cadê minhas camisas?

— Mandei todas pro tintureiro.

— Todas?

— Sim! Todas estavam com marcas de batom.

— Marquei com a Aracy. Vou lhe mostrar um novo samba.

Dona Marta pareceu não dar ouvidos ao filho, que insistiu na contenda:

— Senhora minha mãe, mas com que roupa eu vou?

Bem, não se sabe se essa história realmente aconteceu ou, então, é mais um fruto da vasta imaginação popular. Seja como for, dizem, foi daí que o Noel tirou a ideia para um dos seus sambas mais famosos.

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