Reação das aves
Nomes secretos de Beto deixam um corpo dilacerado na praia
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Beto tinha uma sobrinha, Adriana, a quem sempre chamava de Diana. Ele explicou à moça:
– Gosto do teu nome, mas Diana é teu nome secreto, só teu e meu.
Ao sair da casa dela e caminhar pela praia de Icaraí, em Niterói, pensou no que dissera. Nomes secretos devem ser partilhados com parcimônia, ou deixam de ser secretos. Mas não precisava ficar só em Diana. Ateu, mas leitor da Bíblia como documento histórico e ícone literário, lembrou da bela passagem do Gênesis em que Iahweh modela do solo todas as feras selvagens e aves do céu e as leva ao primeiro homem, para que as nomeie; cada qual devia levar o nome que o homem lhe desse. “E se eu fizesse algo semelhante? Posso atribuir um nome secreto a seres vivos e a coisas inanimadas que me comovem”.
Pensou melhor e decidiu, entre os seres vivos, limitar-se às aves do céu; as feras de Niterói, tigresas e outras predadoras, moviam-se sobre duas pernas. Também não daria nomes secretos a cães e gatos domésticos, seus humanos já o faziam. E nem aos insetos. Em contrapartida, atribuiu um nome que só ele conhecia às árvores, à areia da praia, às ondas do mar. E passou a cumprimentá-las com essas designações.
Certo dia, Beto percebeu que era cumprimentado de volta. Começou pelas árvores. O vento, ao passar por suas folhas, produzia um som quase (almost, but not quite) compreensível, que ele sentiu ser o seu nome para elas. Em seguida, ao caminhar descalço pela praia, sentiu a areia ranger sob seus pés gerando um som diferente, que ele identificou como seu nome; quanto às ondas do mar, estas o saudavam num tom grave, ao quebrarem na orla. A emoção maior veio quando as aves, isoladamente ou em conjunto, passaram a cantar em notas que ele reconheceu como o seu nome para elas, numa cacofonia ensurdecedora, mas enternecedora.
Uma vez, porém, Beto caminhava à beira-mar, absorto, e não cumprimentou os seres vivos e as coisas que batizara. Árvores, areia e ondas pareceram não se importar, mas as aves chilrearam, zangadas.
– Homem (não foi isso que elas pipilaram, mas é impossível reproduzir o nome secreto do Beto), não nos cumprimentaste. Não tens modos? Teu comportamento é inadmissível, intolerável!
– Desculpem, aves (não foi o termo que ele usou, mas nomes secretos devem permanecer secretos). Estava distraído – confessou a elas, que o encaravam furiosas.
– Inadmissível, intolerável – repetiram, evidenciando seu conservadorismo, rigidez e estreiteza mental. Também, com cérebros minúsculos, não se podia exigir que fossem einsteins…
O tio de Diana resolveu brincar com elas.
– É que estava escolhendo outro nome para algumas de vocês. As que tiverem alguma pena azul passarão a ser chamadas de bleubleus, as outras conservarão o nome de … (e pronunciou o nome secreto).
Gravemente, cada ave examinou suas penas. Era visível o seu sofrimento por terem de decidir se aquela plumagem marrom, verde ou de um preto retinto continha alguma nuance, algum resquício de azul. E ele descobriu que, além da rigidez, conservadorismo e estreiteza mental que as caracterizam, as aves não têm um pingo de senso de humor. E mais, detestam tomar decisões. E quem as obriga a isso.
– Homem (nome secreto gorjeado com ódio e desprezo), estás zombando de nós. Isso é inadmissível, intolerável – e se precipitaram sobre ele.
Beto caiu no chão com o impacto de centenas de pequenos golpes e teve o peito dilacerado por bicos e garras cortantes. A dor foi intensa, mas breve, e depois mais nada.
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