Custei a lembrar a razão por que tinha ido ao centro da cidade naquele dia. Mas, como uma memória de computador onde a pesquisa fica rodando, rodando, até chegar ao resultado esperado, a lembrança me ocorreu: foi tudo por causa da torneira elétrica da cozinha. Claro! Quem mora numa cidade fria sabe a diferença que faz lavar a louça do jantar com uma aguinha quente. A torneira elétrica havia dado defeito e, naquele dia, minha mulher quase me ameaçara de divórcio caso eu não conseguisse consertar o problema a tempo de ela voltar do trabalho.
Não que a tarefa de lavar a louça pesasse inteira sobre ela – nós dividíamos a função e posso dizer, com certeza, que na maioria das vezes era eu que assumia a pia da cozinha após prepararmos as refeições. Mas é que ela também fazia alguma parte daquilo e a água quente era, portanto, fundamental. Ela detestava água fria.
Enfim, saí em demanda de uma resistência elétrica para a torneira. Meu filho, então com uns 4 anos, curtindo suas férias de julho, foi comigo. Lá íamos nós, pelo frio da tarde, para a área de variado comércio local. Achar a loja que vendia as resistências foi extremamente fácil. Estando nela, bastou fornecer ao balconista a marca da torneira e, rapidamente, ele identificou a peça nas prateleiras atrás de si. Ainda disse que, se precisasse, ali mesmo tinham um serviço de troca e de teste das torneiras elétricas. Mas meu orgulho de dono-de-casa envolvia eu mesmo fazer o serviço. Fechar o registro da cozinha, tirar a torneira do lugar, trocar a resistência e instalar tudo de novo a contento.
Paguei o preço pedido e saí da loja, meu filho pela mão, para o caminho de retorno. Passando em frente a uma loja de animais, nós dois, ao mesmo tempo, tivemos nossa atenção despertada para o quadro que se divisava: dentre várias aves em suas diminutas gaiolas – periquitos, calopsitas e até pintinhos – vimos uma pequena codorninha. Uma codorninha triste, encolhida de frio, marrom, manchadinha de branco, lá no fundo de um compartimento de gaiola, como a pensar nas suas irmãs desaparecidas.
Meu filho e eu ignoramos as aves mais belas e almejadas e nos concentrávamos na pobre codorna. Dirigi-me ao rapaz que atendia na loja e perguntei:
– Moço, onde estão as outras codornas? Por que ela está sozinha?
– Foram vendidas. Codorna tem muita saída.
– E essa ficou?
– Ficou! É a última. Só chega mais na terça-feira que vem. O senhor quer levar?
Por um instante, fui chamado de volta à razão. Por que raios eu levaria esse bicho para casa? Gostávamos de viajar sempre que havia chance. Uma ave tão delicada exigiria cuidados.
– Quanto é?, perguntei.
– Cinco reais.
Meu filho me olhou com seus olhinhos implorantes, no que foi respondido pela minha ternura, por ele e pelo indefeso bichinho. Eu era, naquele instante, a mão de Deus, que podia salvar a vida da codorna ou deixá-la à mercê de um destino desconhecido e cruel. Por apenas cinco míseros reais, podia fazer com que a codorninha vivesse o resto de sua vida natural em santa tranquilidade, alimentada, aquecida e acarinhada.
O que minha mulher iria dizer quando nos visse trazendo pelas mãos uma resistência de torneria e uma codorna?
Preferi crer que a divindade escreve o certo pelas linhas tortas e, pensando na vida da pequena ave, comprei-a. E o rapaz da loja a entregou numa caixinha de papelão com furos. Comprei também, na mesma loja, alguns gramas de comida própria para ela, uma ração que se podia dar molhada. E milho picado, conhecido como canjiquinha.
Voltamos felizes para casa e, lá chegando, a festa foi tão grande pelo bichinho que até esquecemos a questão da torneira.
Minha mulher logo simpatizou com ela, meu filho sugeriu que lhe déssemos o nome de Joana. E Joana ficou, embora eu não soubesse bem se ela era fêmea ou macho. Colocamos até sobrenome, inspirado em seu nome científico descoberto num livro de ciências: Nothura minor tinamiforme.
Depois me esclareceram que era, certamente, fêmea, porque raramente se vendem os machos. Muitos compram esses bichinhos para razões culinárias. Inclusive pelo ovo.
E o gênero de Joana foi confirmado quando, numa manhã, achamos dentro de sua gaiolinha um ovo, desses coloridos, que ela havia posto.
Ela passava o dia em um viveiro grande, no quintal, onde ciscava à vontade, tomava sol e balançava suas asinhas. Tomava banho numa tigela de cerâmica e, aparentemente, era muito feliz. Vez ou outra emitia um piozinho discreto e metálico.
À noite, buscando pô-la a salvo do ataque de algum gambá, eu a guardava em uma gaiolinha menor e a levava para dentro de casa onde, num canto quentinho do quarto, ela dormia tranquilamente até que o dia começasse a nascer, quando ouvíamos o inconfundível ruído de ela ciscando no fundo da gaiola guarnecido de jornal dobrado.
No dia em que Rose, nossa diarista, foi trabalhar, achou muito engraçado que houvéssemos comprado uma codorna. Com aquele vozeirão dela, sempre com um sorriso no rosto, disse:
– Só mesmo vocês… Mas é pra criar, ou é pra comer? Isso aí recheado com farofa é uma delícia!
Claro que o destino de Joana Nothura Minor Tinamiforme já estava traçado. Não era, certamente, o forno. Era a glória. Glória almejada, mas pouco alcançada, pela maioria das codornas que não estivessem conformadas com a dura e triste rotina cíclica de colocar ovos para se comer em conserva.
Joana ia vivendo sua vidinha, imaculada, cheia de ternuras. Meu filho a colocava na mão e ela se encolhia, como a entender o carinho.
O tempo passou e ela foi ficando mais gordinha.
Fiquei pensando… Caso ela pudesse filosofar sobre sua própria vida, veria nela uma sorte abençoada ou uma inutilidade total? Seria ela uma codorna feliz ou uma forma esférica de manchada inutilidade?
Nunca saberemos.
O fato é que seguimos juntos por aquelas férias de inverno, até vir novamente o período de aulas, sucedido por novas férias, agora de verão, e Joana sempre bem cuidada e alimentada.
Um dia, fiz-lhe um poema. Jamais soube que outro poeta houvesse dedicado versos a uma codorna.
Viveu assim por aproximadamente dois anos quando, desanimada, morreu num fim de tarde, cumprindo seu ciclo natural de vida.
Tenho ainda uns ovinhos dela, guardados imaculados dentro de uma taça, na cristaleira de nossa sala.